Não é de hoje, sempre foi deste jeito: a prática que envolve os contratos de transmissão de campeonatos de futebol no país é invariavelmente contaminada pela exigência não escrita de que o vendedor deve ser preservado de críticas ou revelações comprometedoras feitas pelo comprador.
Como se uma operação de compra e venda se transformasse em sociedade entre as partes.
Durante décadas funcionaram o monopólio da Globo e as relações promíscuas da empresa com a CBF e as federações estaduais.
Impossível deixar de usar a primeira pessoa como testemunha do método que também a Editora Abril passou a utilizar quando começou sua operação na TV fechada —inicialmente com a TVA.
Por 25 anos a revista Placar, de 1970 a 1995, notabilizou-se por criticar o atraso e a corrupção na gestão do futebol brasileiro com mais que absoluta liberdade —com elogios da direção da empresa.
Até o dia em que Ricardo Teixeira, então presidente da CBF, disse a Roberto Civita, dono da Abril, segundo o próprio contou ao pedir compreensão e o fim das críticas: “Roberto Marinho manda na Globo, eu mando na CBF, e você não manda na Abril. Não posso negociar com você enquanto a Placar seguir batendo em mim a cada edição”.
Diante da inaceitável proposta de fim das críticas, seguiu-se nota da Abril para explicar que, por divergências editoriais, como fiz questão de impor, estava encerrada minha participação de um quarto de século na empresa.
Então, vim parar nesta Folha. Lá se vão 30 anos.
Não muito tempo depois soube que Civita disse em reunião com seus executivos: “O Kfouri tem razão. Esse Ricardo Teixeira não cumpre em pé o que promete sentado”.
A Abril nunca conseguiu quebrar o monopólio da Globo, que tinha como negociador com a CBF um compadre de Teixeira, Marcelo Campos Pinto, depois denunciado no Fifagate.
É assim que funciona.
Triste constatar quando os interesses comerciais se sobrepõem ao jornalismo, quando a tênue fronteira que separa a Igreja do Estado é desrespeitada e o interesse da cidadania é passado para trás.
Daí, também, a tendência cada vez maior de tratar o futebol apenas como entretenimento e deixar de lado suas mazelas, com a justificativa de que ninguém está interessado se o cartola rouba ou não, porque torcedores querem saber de gols, vitórias, contratações etc.
As coisas mudaram no campo das transmissões, e o surgimento da internet, do streaming, democratizou os meios de transmissão e aumentou a concorrência por seus direitos, algo saudável.
O modo de negociar, no entanto, pouco se alterou.
Direitos internacionais dão menos dores de cabeça, seja porque tratados com intermediários, seja porque quem os vende nem sabe como o produto é tratado pelos veículos compradores.
Na paróquia é diferente.
Jamais cartola nenhum admitirá que pediu cabeça de jornalista ou que se queixou para a cúpula da empresa.
Mas é prática recorrente.
No conflito de interesses que se estabelece, o vendedor argumenta ser absurdo comprar um evento e criticá-lo, o comprador pondera que precisa proteger seus interesses, e o jornalista fica imprensado nesta luta do rochedo com o mar —ou dá ou desce.
Decisão que depende das circunstâncias de cada um e que dispensa heróis com o pescoço alheio.