Frederico Trajano, 49, não gosta de holofotes. Muito menos de ser pego de surpresa. “Já começou?”, pergunta à repórter, depois de perceber que a sequência de perguntas diante do vídeo não era apenas um “quebra-gelo” para início de conversa. “Vamos começar de novo, então, por favor.”
Fred, como é conhecido, nasceu em Franca (SP) em 1976, no mesmo ano em que o Magazine Luiza, fundado pela tia-avó Luiza Trajano Donato, fez sua primeira aquisição —as Lojas Mercantil — , o que permitiu que a varejista francana chegasse a outras cidades do interior paulista.
Quase 50 anos depois, os últimos 10 como CEO do Magalu, Fred Trajano acumula 22 aquisições –antes dele, a empresa havia feito 10. Desde que assumiu o comando da companhia, transformou uma das maiores varejistas de móveis e eletro do país em um conglomerado de empresas que incluem artigos esportivos (Netshoes), acessórios (Shoestock), calçados (Zatini), plataformas de delivery (AiQFome), conteúdo (CanalTech), livros (Estante Virtual) e games (Kabum!), colocando os dois pés no mundo digital.
O “ecossistema” do Magalu envolve ainda diversas empresas especializadas em operações online, como Logbee (plataforma que gerencia entregas em tempo real), Magalu Ads (publicidade) e Magalu Pagamentos (antecipação de recebíveis), voltadas aos vendedores que integram o marketplace da varejista (os “sellers”).
“Quando assumi, em 2016, a minha missão era digitalizar a companhia. A gente concluiu esse ciclo em 2020, quando fechamos 1.300 lojas por causa da pandemia e ainda assim crescemos 50%”, diz. Neste ano, ele pretende concluir o segundo ciclo estratégico: garantir que a empresa esteja bem menos exposta ao tradicional movimento cíclico do varejo.
“Quando a Selic está muito alta, é muito difícil ganhar dinheiro. Quando os juros estão baixos, este negócio [de móveis e eletro] vai melhor do que outros segmentos do varejo. É altamente cíclico”, diz. “Em todo ciclo de alta de juros, uma empresa do meu setor quebra ou chega perto disso.”
De zero a dez, que nota daria a si mesmo como vendedor?
Eu me dou 8. Acho que ia bem, batia as minhas metas. Só não me dou 10 porque eu coloco no patamar de 10 a minha tia e a minha mãe, que eram vendedoras excepcionais. Especialmente a minha tia, Luíza Trajano Donato, fundadora do grupo, que faleceu recentemente [em 12/02/2024]. Ela é, era e vai continuar sendo a melhor vendedora que já existiu na cidade de Franca.
Na infância, o sr. trabalhou nas férias escolares no Magalu e já levou seus dois filhos mais velhos para fazerem o mesmo. Qual a importância dessa tradição?
Quando chegava dezembro, uma época superimportante para o varejo, quando as empresas precisam aumentar o quadro de funcionários, a gente ia ajudar, eu e meus primos. Trabalhei em vendas, em expedição de produto, estoque, em todos os setores de loja, desde os dez anos. Foi importante para a minha formação profissional. Fora que era divertido estar em loja, principalmente em um período tão movimentado quanto o Natal. Era pouco tempo, um mês, antes de a gente viajar, mas já era o suficiente para sentir a ‘barriga no balcão”. Isso, inclusive, é um valor corporativo até hoje. Gastar sola de sapato, estar próximo da linha de frente. A gente incentiva todos a estarem próximos das lojas, dos clientes.
Pesquisas apontam que 75% das empresas familiares não passam da terceira geração. O Magalu vai fazer parte dos outros 25%?
Eu já ouvi falar muito dessa estatística, mas acho que ela acaba levando a uma conclusão errada. Se você pensar que uma geração dura 30 anos, três gerações são 90 anos, certo? Quantas empresas passam de 90 anos? Eu garanto que tem muito mais empresas familiares do que empresas não familiares com essa idade. Empresa familiar tem muito mais longevidade. É muito difícil para qualquer empresa durar mais de 90 anos, principalmente em países de alta volatilidade econômica, como o Brasil.
O varejo de móveis e eletro é muito dependente de crédito –mas o sr. já disse que o Magalu estava construindo um negócio “à prova de Selic”. Como é isso?
Este ano eu completo meu décimo ano como presidente do Magalu. Na minha gestão, tivemos dois ciclos estratégicos. O primeiro foi o da digitalização da companhia, que era a minha missão quando assumi, em 2016. A gente tinha GMV [vendas brutas] de R$ 10 bilhões no ano, sendo R$ 2 bilhões do online [hoje são R$ 65,3 bilhões de faturamento, sendo R$ 46,1 bilhões do e-commerce]. Já se sabia que o varejo iria se digitalizar, era imperativo que a gente fizesse esse processo. Eu era a pessoa certa porque estava há 16 anos tocando o e-commerce da companhia.
Considero que a gente concluiu a digitalização em 2020, quando fechamos 1.300 lojas por causa da pandemia e, mesmo assim, crescemos 50%. Mas o que eu ainda não tinha feito? Tirar a ciclicidade do nosso resultado, essa dependência do cenário macroeconômico. A gente começou um segundo ciclo estratégico, que foi o da construção do ecossistema, justamente para conseguir um bom resultado mesmo quando a Selic estiver muito alta. Eu vejo que, em todo ciclo de alta de juros, um grande player do setor quebra, pede recuperação judicial ou extrajudicial.
O objetivo era criar outras linhas de negócios que fizessem a gente depender menos não só de crédito, mas da própria categoria [móveis e eletro]. São várias linhas que vão se somando e assim afastam a volatilidade do resultado. Em 2024, a Selic superou 12%, um dos maiores juros reais do mundo, e nosso lucro operacional cresceu 40%, o que seria impossível antes. Saímos de um prejuízo de R$ 500 milhões em 2023 para um lucro de R$ 300 milhões em 2024. O resultado já se mostra mais à prova de Selic.
Esse ecossistema, com diversas empresas, não torna mais lentas as tomadas de decisão?
Do jeito que a gente construiu, não. Determinamos algumas regras de governança que nos ajudam a ter velocidade. Quando a gente começou o ciclo de aquisições, foram 19 em 24 meses. Compramos sobretudo empresas digitais, sem grandes legados físicos, mas que vinham com plataformas tecnológicas robustas.
Na aquisição, a gente não fazia só a due diligence [diligência prévia] financeira, a gente se certificava de que eram empresas com arquiteturas tecnológicas que poderiam se conectar facilmente à nossa plataforma. A gente construiu o ecossistema de tal maneira que essas empresas estão conectadas, mas não completamente integradas, algo que preserva a autonomia de gestão. Na Netshoes, por exemplo, uma das fundadoras, a Graciela Kumruian, é a CEO, que toca o negócio como se ainda fosse dela. Existem algumas metas, como conectar o catálogo [da Netshoes] dentro do Magalu, utilizar a Magalog e o Magalu Pagamentos, mas ela tem total autonomia.
É uma forma de integração de empresas mais parecida com a dos ecossistemas da China, que conseguem crescer sem perder a velocidade das decisões.
Por falar nisso, o sr. já disse que gostaria que o Brasil fosse um país tão digital quanto a China. Que papel o Magalu pode desempenhar para atingir essa meta?
A pandemia turbinou bastante esse processo, que teve mais empresas como protagonistas, como o Nubank e o iFood. O brasileiro adota a tecnologia muito rápido, como foi com o Pix. Mas o e-commerce no Brasil representa só 13% do varejo total. Na China, este número está próximo de 50%. Temos muito chão pela frente. Cerca de 7 milhões de CNPJs são do varejo. Muitos têm lojas físicas, mas são completamente analógicos, ainda precisam se digitalizar. O Magalu pode ajudar bastante nesse processo, para que essas empresas vendam online. Temos sistemas, know-how e cultura para fazer essa transição acontecer.
O sr. sempre foi crítico quanto ao fato de as plataformas chinesas venderem no Brasil sem pagarem os mesmos impostos que as varejistas locais. Mas, no ano passado, o Magalu se associou ao AliExpress. Como foi essa aproximação?
Eu era crítico à falta de isonomia tributária, ao fato de os sellers chineses pagarem menos impostos que os sellers brasileiros. O mínimo que você tem que ter em um bom regime fiscal é igualdade de condições para todos. Mas eu nunca fui contra o cross-border [venda on-line de produtos importados por estrangeiros]. Sempre achei que era inevitável. Só nos associamos ao AliExpress quando a isonomia aconteceu e a competição passou a ser justa. Hoje vendemos nossos produtos na plataforma do AliExpress no Brasil, principalmente o estoque próprio de eletroeletrônicos, e eles vendem as categorias cross-border, que são de uma faixa de preço que a gente não tinha [no marketplace], como acessórios de informática, itens de moda, entre vários outros.
Em termos de estilo de gestão, o que aproxima e o que diferencia o sr. e sua mãe?
Os valores corporativos do Magalu hoje são os mesmos dela e da minha tia. A gente gosta de gente, eu continuo muito focado em ter uma equipe feliz, motivada, com responsabilidade em relação a todos os stakeholders [públicos com os quais a empresa se relaciona]. Ela sempre teve cuidado com as pessoas, até pela gestão feminina, que costuma olhar o negócio em 360 graus e não só o lucro. Muito inspirado pelo legado delas, implantei o programa de trainees para pessoas negras. Mas eu tenho um estilo de gestão mais voltado à tecnologia. Tenho formação acadêmica, estudei na FGV e na Stanford University [EUA]. Uso aqui algumas ferramentas de gestão que aprendi nessas instituições. Já minha mãe tem um estilo mais intuitivo. Mas temos mais similaridades do que diferenças.
O sr. gosta de política, já pensou em ser prefeito, inclusive. Hoje Fred Trajano tem ambições nessa seara?
Não tenho ambições políticas. Eu gosto de política, tanto é que sou sócio de um jornal digital que cobre o mundo político, o Poder 360, sócio minoritário, sem interferência na Redação. Acho a política importante para a evolução [da sociedade], a gente não deve delegar nossa responsabilidade como cidadãos aos políticos, o que acontece muito no Brasil. Uma boa democracia, boas escolhas de governantes ajudam bastante, mas a gente também pode fazer a diferença na iniciativa privada. Uma empresa como o Magalu, ao ajudar o varejo brasileiro a se digitalizar, contribuir para que fornecedores e sellers vendam mais, ao gerar empregos, coletar impostos –foram mais de R$ 3 bilhões pagos em 2024–, está ajudando o Brasil a se desenvolver. Além disso, a gente apoia instituições como a Amigos do Bem, que ajuda 150 mil brasileiros no sertão do Nordeste, uma região com IDH [índice de desenvolvimento humano] semelhante ao da África.
Avalia que existam pontos na regulação do comércio varejista no Brasil que deveriam ser revistos?
As plataformas de marketplace precisam se corresponsabilizar pela informalidade dos sellers. Não só os chineses, mas o e-commerce como um todo. Hoje sei que muitos vendedores cometem atos de informalidade nos grandes marketplaces, e as varejistas não se responsabilizam por isso. Na reforma tributária, quase passou uma regra que determinava que o marketplace seria corresponsável pelo recolhimento dos impostos dos sellers. Mas houve um lobby muito grande e a medida não foi aprovada. Se fosse, seria uma evolução, garantiria o aumento da arrecadação. No Magazine Luiza, a gente garante que o vendedor emite uma nota fiscal eletrônica exatamente no mesmo valor do que o consumidor pagou.
Quais as suas expectativas para 2025 em termos de negócios?
Eu vejo o ano muito parecido com o anterior. Infelizmente, o ciclo de alta de juros ainda não acabou, mas eu vejo uma demanda mais robusta do que a dos consensos dos economistas. Há uma população que está em pleno emprego, salários ainda protegidos pelos indexadores, benefícios públicos e sociais, como Bolsa Família, salários da iniciativa privada protegidos pela reposição inflacionária. A economia pode até desacelerar –porque a base de 2023 para 2024 foi muito baixa, e a base de 2024 é mais sólida–, mas a demanda vai continuar robusta.
Você é o quarto líder do Magazine Luiza em 68 anos de empresa. A transformação tecnológica será a sua marca registrada?
A digitalização da companhia, feita sobretudo na minha gestão, é um legado que eu vou deixar para as gerações futuras, mas não sei se é o único. O mundo está mudando de novo, nós já estamos vivendo uma nova revolução, que é a da inteligência artificial, que deve ter um impacto tão grande nos hábitos de consumo quanto foi o advento da internet e do celular, duas mudanças tecnológicas que transformaram a forma de comprar. Provavelmente eu vou ter que construir novos alicerces e talvez consiga deixar outros legados, não só para o Magalu, mas para todas as empresas e atores que fazem parte desse ecossistema. Eu gostaria de deixar um legado de digitalização para o varejo como um todo, e não só para o Magazine Luiza.
Como deve ser a varejista em 2030?
Os clientes vão comprar quase sempre através de um agente de IA. Espero que o Magalu esteja preparado para essa mudança de hábitos, que seja uma das empresas que consigam se antecipar a essa tendência e oferecer um serviço que melhore a experiência do consumidor, que ainda não é a ideal.
Por quê?
A jornada de compra atual, em que você encontra um produto pelo buscador, vê uma foto com uma ficha técnica, tem muitas falhas. No passado, parecia a melhor experiência possível, mas é uma decisão complexa, de muitas camadas, é complicado entender as especificidades de cada produto. É preciso contextualizar o produto para a ocasião de compra. Existe um gap tecnológico para fazer isso de maneira massiva. Agora, com a evolução da inteligência artificial, acho que existem ferramentas para melhorar essa jornada –que ainda precisa ter calor humano.
RAIO X – FREDERICO TRAJANO
Idade: 49
Origem: Franca (SP)
Onde trabalhou: Deutsche Bank Securities, WestSphere Equity Investors, Magazine Luiza
Formação: Administração de empresas
NOME DA REDE FOI ESCOLHIDO POR CLIENTE EM TROCA DE UM SOFÁ
Nos anos 1940, as mulheres tinham vergonha de calçar 38 ou algum número maior. Luiza Trajano sabia disso. Quando chegava uma freguesa em busca deste número, dizia que iria buscar “sapatos para pés pequenos”. Trazia caixas com calçados 38. Quando a cliente afirmava que aquele não era um número pequeno, Luiza tinha a resposta na ponta da língua: “Minha filha, você nem imagina o tamanho do pé de outras clientes que aparecem por aqui! Acredite, o seu pé é pequeno”.
A história é narrada pelo jornalista Pedro Bial, autor do livro “Luiza Helena –Mulher do Brasil” (editora Gente, 2022) sobre Luiza Helena Trajano Inácio Rodrigues, atual presidente do conselho de administração do Magazine Luiza.
O livro sobre a empresária começa com a história da tia, Luiza Trajano, a vendedora talentosa que mais tarde se tornaria a fundadora do Magazine Luiza. Ela faleceu no ano passado aos 97 anos, de causas naturais, depois de passar os últimos anos sofrendo de demência.
Tia e madrinha de Luiza Helena, a empreendedora Luiza não teve filhos e fez da sobrinha e xará a sua sucessora nos negócios. O próprio nome de Luiza Helena foi diretamente influenciado pela tia.
Em Franca, Luiza conheceu o futuro marido, Pelegrino José Donato, um caixeiro-viajante, com quem se casou em 1956. No ano seguinte, descobriu que uma loja no centro da cidade, A Cristaleira, especializada em “presentes finos”, estava à venda. Juntou com o marido todo o dinheiro que tinham e deram a entrada para comprar a loja. Para pagar as demais parcelas, os dois teriam que trabalhar muito.
Mas a empreendedora não estava satisfeita com o nome: A Cristaleira soava ultrapassado naquele Brasil que começava a se industrializar, e se encantava com produtos como liquidificador, aspirador e enceradeira. Ela decidiu promover um concurso na rádio local. O ouvinte que sugerisse o nome mais votado ganharia um sofá. Venceu Magazine Luiza.
Luiza passou o comando da rede para a sobrinha Luiza Helena em 1991, depois de um embate com o marido: conselheiro da empresa, Pelegrino não aceitava a sobrinha no comando, por machismo. Mas ela trouxe inovações importantes para a rede, como as lojas virtuais, que vendiam por catálogo; o marketing do “Caminhão do Faustão”, em conjunto com o apresentador Fausto Silva; e a Liquidação Fantástica, realizada até hoje na primeira sexta-feira de janeiro.
Em 2008, Luiza Helena inaugurou 46 lojas no mesmo dia na cidade de São Paulo, marcando o desembarque da rede na capital paulista. Preocupada em preparar a abertura de capital da empresa, ela chamou um especialista em varejo, Marcelo Silva (ex-presidente da Pernambucanas e do GBarbosa), para assumir como CEO, em 2009, enquanto ela mesma foi para a presidência do conselho. O Magalu estreou na Bolsa em 2011.
Outra missão de Marcelo Silva foi preparar Frederico Trajano como sucessor do grupo.
RAIO X – MAGAZINE LUIZA
Fundação: 1957
Funcionários: 37 mil
Faturamento 2024: R$ 65,3 bilhões
Lojas: 1.245, mais 22 centros de distribuição em 16 estados e no Distrito Federal
Presença: Distrito Federal e 21 estados, de todas as regiões do país
Principais concorrentes: Mercado Livre, Casas Bahia, Amazon, Shopee
SÉRIE ENTREVISTA LIDERANÇAS DE GIGANTES DO VAREJO BRASILEIRO
A Folha deu início em 24 de março à série “Lideranças do Varejo”, com entrevistas em vídeo e texto com os presidentes de algumas das maiores redes e marketplaces do país.
As reportagens trazem um perfil das empresas, dos seus líderes e a história de algumas marcas já incorporadas ao dia a dia da população.
Entre os temas que ocupam o cotidiano dos executivos estão a queda de braço com a indústria por preços, a adaptação às legislações trabalhista, tributária e que regulamentam a logística em diferentes estados e cidades do Brasil, a adoção de evoluções tecnológicas, a procura por melhor margem de lucro e a necessidade de sentir o pulso do consumidor, para acompanhar as mudanças de comportamento que levam a novos hábitos de compras.