Com o novo acordo de US$ 20 bilhões com o FMI (Fundo Monetário Internacional), a Argentina tem “cinco balas de canhão” para segurar o câmbio, mas as coisas ainda podem se complicar no país, avalia o pesquisador do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas) Fabio Giambiagi.
O economista lembra que, apesar de a cooperação ter sido largamente comemorada pelo governo do presidente Javier Milei, a relação do país com o Fundo é longa e complexa, e o governo argentino pode enfrentar dificuldades nos próximos anos para conseguir pagar a dívida.
“A tendência é que o câmbio se aproxime do teto da banda de flutuação, e o governo agora tem cinco balas de canhão para derrubá-lo, com toda essa grana que conseguiu. Mas a questão é que se o câmbio está sempre no teto, você começa a perder reservas e as coisas podem se complicar, principalmente com a proximidade de processos eleitorais”, afirma Giambiagi.
Nesta terça-feira (15), o banco central do país anunciou que recebeu o primeiro aporte do FMI, de US$ 12 bilhões, de um total de US$ 20 bilhões acordados com o Fundo. O pagamento veio logo após as medidas que passaram a valer nesta semana, como o fim do “cepo cambiário”, a restrição para a compra de dólares, para pessoas físicas após seis anos, e a criação de um regime de flutuação entre bandas para o dólar.
Na avaliação do pesquisador, a tendência é que a Argentina busque uma maior flexibilidade cambial no futuro, mas isso depende da estabilidade política e da confiança no plano econômico atual, embora não haja garantia de que conseguirá manter o fim do “cepo”. “É como alguém dizer que daqui a seis meses vai perder dez quilos. Tudo bem, você pode se esforçar, mas vai depender de um conjunto de outros fatores.”
Mesmo economistas próximos a Milei vinham alertando que o plano tinha problemas e que era preciso desvalorizar a moeda. A mudança no regime cambial para viabilizar o acordo com o FMI é uma nova fase ou um fracasso do plano anterior?
Nesses processos de estabilização, em um primeiro momento, é natural ter algum tipo de ancoragem. Mas, com o passar do tempo, isso tende a gerar uma série de dificuldades. Vimos isso aqui no Brasil, nos anos iniciais do Plano Real, e já tinha acontecido lá atrás também na Argentina com a conversibilidade. A tendência é que em um belo dia eles acabem com o regime de flutuação em bandas, preferencialmente quando o câmbio estiver dentro delas, sem que isso gere maiores perturbações. Mas para isso é necessário que não haja grandes incertezas em relação à sustentação futura do plano, ou seja, que não haja uma perspectiva de mudança de 180 graus da política econômica.
Qual é o balanço dos primeiros dias do novo regime do câmbio?
Começou bem, eles estão em uma nova situação, com o câmbio dentro da banda, relativamente próximo do centro. Mas há uma questão-chave que só os próximos meses vão poder dar a resposta, que é qual vai ser o nível real desse teto, já descontada a inflação. Se eles tiverem uma desvalorização do teto da banda de 1% ao mês, e a inflação também for de 1%, o teto se mantém constante em termos reais. Se a inflação for maior, como certamente vai ser em abril e maio, vai haver alguma corrosão dessa desvalorização inicial. O problema é se isso se repetir ao longo dos meses, e o governo se deixar levar pela empolgação novamente, como aconteceu em março, quando eles achavam que a inflação seria perto de 2% e foi quase o dobro.
A tendência é que o câmbio se aproxime do teto da banda de flutuação, e o governo agora tem cinco balas de canhão para derrubá-lo, com toda essa grana que conseguiu. Mas a questão é que se o câmbio está sempre no teto, você começa a perder reservas e as coisas podem se complicar, principalmente com a proximidade de processos eleitorais. Isso talvez não aconteça com as eleições legislativas deste ano, que já estão perto e provavelmente a situação vai ser confortável para o governo, mas se a economia caminhar mais lenta no ano que vem e o peronismo, que é esse saco de gatos, voltar a se unificar e ficar competitivo em 2027, as coisas podem ficar complicadas para Milei.
Essa desvalorização da moeda agora deve chegar aos preços nos próximos meses. Como o governo vai enfrentar um repique da inflação?
Essa é a grande dúvida. Vai ser muito importante ver qual vai ser a inflação de abril e maio, já captando essa desvalorização cheia. Depois, ver a velocidade de queda. É razoável imaginar que ela volte a cair, assim como tinha caído depois da desvalorização que ele fez em dezembro de 2023.
Faz sentido que um governo comemore uma nova dívida com o FMI?
O FMI fez uma aposta de risco pesada, ele tinha uma exposição com os argentinos de US$ 45 bilhões e agora vai ficar com uma de US$ 60 bilhões. Emprestou mais dinheiro a um país que não tem a melhor das famas de bom pagador. Este ano, o relacionamento com o Fundo vai ser espetacular, não vão pagar nada, vão receber US$ 15 bilhões. Ano que vem, fica mais ou menos no zero a zero, depois começa o momento de pagar, e não vão ter mais bala na agulha, porque o FMI não vai emprestar mais um tostão, o dinheiro da regularização dos dólares que os argentinos mantinham no exterior acabou e o mercado vai esperar as eleições para ver como é que as coisas vão ficar.
Normalmente, com um devedor complicado, o que você quer? Que o devedor te pague. O que o FMI está fazendo é não apenas deixar de receber como aumentar a dívida. Se dá tudo certo, maravilha, ele bancou o risco e vai ser premiado recebendo depois. Mas pode dar errado também. Só saberemos no decorrer dos próximos anos. Eles bancaram o risco nesse sentido, politicamente.
O empréstimo atual é diferente do que foi tomado por Mauricio Macri em 2018?
Tem de ser. Eles agora precisam fazer o oposto do que foi feito. Lá atrás, a Argentina devia a credores externos, foi ao FMI e utilizou o recurso para que os credores tirassem o dinheiro do país e não houvesse calote. Agora, o ideal é fazer o contrário, buscar uma injeção de capitais, como nos anos 1990, receber essa grana, pagar o Fundo e vida que segue. Só que até onde a minha vista alcança, não vejo essa injeção forte de capitais acontecendo nos próximos dois anos. Se Milei for reeleito ou se fizer um sucessor, aí um segundo governo poderia ter uma injeção pesada de capitais. Por enquanto, vai ter de matar um leão por dia, superar os obstáculos ano a ano.
O governo agiu bem ao liberar a compra de dólares para pessoas físicas agora e para as empresas apenas quando terminar o exercício de 2025?
Sei que o governo está sendo acusado e criticado por não ter feito uma liberação pura do ‘cepo’, mas ele não podia fazer isso nas atuais circunstâncias. Acho que foram pragmáticos, até inteligentes, resolveram um problema de fluxo. Ainda tem o problema do estoque, que irá se resolvendo aos poucos. Em 2026, as empresas já vão poder remeter os dividendos dos lucros de 2025. É certamente um avanço importante em relação à situação que existia antes.
Mas o país já tinha tentado sair do ‘cepo’ e precisou voltar atrás. Qual é a garantia de que isso não volte a acontecer?
Não, não há como garantir isso. É como alguém dizer que daqui a seis meses vai perder dez quilos. Tudo bem, você pode se esforçar, mas vai depender de um conjunto de outros fatores. Digamos o seguinte, que tenha uma perspectiva de troca de governo em 2027, sai Milei e entra um peronista muito aguerrido, com um candidato fazendo declarações agressivas e havendo fuga de capitais. Pode acontecer. O ‘cepo’ não é algo que você adota por querer. O Brasil também passou por isso, a gente chamava de controle de capitais, e deixou isso para trás, felizmente. Mas você precisa realmente de muitos anos de exercício dentro das regras do jogo. Hoje ninguém tem certeza do que irá acontecer, quem entra com dinheiro na Argentina sabe que o país ainda tem incertezas. É por isso que se fala em economias emergentes, são aquelas que têm uma série de problemas. Em princípio, é um esquema que permitiria ter confiança, mas vai depender do que acontecer com o balanço de pagamento nos próximos anos.
A relação da Argentina com o FMI é longa, mas o governo Milei tem argumentado que, diferentemente de outras vezes em que o país recorreu ao Fundo, as reformas agora foram feitas antes. Isso faz sentido?
Tem um fundo de verdade, mas também obviamente o acordo é resultado de uma afinidade entre o governo dos Estados Unidos e o da Argentina, que levou o FMI a fazer essa aposta. Se fala muito da questão fiscal, mas para que o Fundo possa ser pago, o país tem de ter dólares. Então, se não entrarem essas exportações todas que estão previstas, vai ser difícil conseguir pagar a dívida, por melhor que esteja a situação fiscal. A Argentina não paga o Fundo com pesos, ela paga com dólares.
Apesar da proximidade entre Milei e Donald Trump, o efeito das medidas da Casa Branca sobre o comércio exterior também afeta a recuperação da Argentina?
Todas as políticas comerciais que vimos nos últimos dias inibem investimentos. Podemos colocar assim: Trump, com uma mão, deu US$ 20 bilhões para a Argentina. E com a outra, está segurando uma marreta com a qual destrói todas as janelas da casa. Vamos ver qual será o resultado disso.
RAIO-X : Fabio Giambiagi, 62
É pesquisador associado do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas). É formado em economia pela UFRJ e tem ascendência argentina. Foi membro do staff do BID em Washington durante dois anos e é ex-assessor do Ministério do Planejamento. É especialista em finanças públicas e Previdência Social