/ Apr 19, 2025

Órfãos do túnel Santos-Guarujá dividem angústias e medos – 18/04/2025 – Mercado

Parte dos moradores dos quatro quarteirões ocupados pela rua José do Patrocínio, no bairro do Macuco, em Santos, já cansou de ouvir a mesma pergunta.

Por que vocês são contra o progresso?

Já escutaram também que são mercenários. Ou que atrapalham o crescimento da cidade.

“Não somos contra esta obra. Mas o local ideal não é aqui”, afirma Alcione Alves Rocha, 54, presidente da Associação Comunitária do Macuco.

Ela é dona de um dos 65 imóveis que podem ser desapropriados para a construção das vias de acesso do túnel entre Santos e Guarujá, que atende a uma demanda histórica da Baixada Santista para facilitar o transporte. O edital foi lançado em 27 de fevereiro, em cerimônia com a presença do presidente Lula (PT) e do governador paulista Tarcísio de Freitas (Republicanos). A previsão do início das obras é em 2026 e a conclusão, em 2028.

O leilão deverá acontecer em agosto e o orçamento é de R$ 5,96 bilhões, sendo que R$ 4,96 bilhões serão divididos entre os governos federal e estadual. É a obra mais cara do novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).

Os residentes na rua José do Patrocínio fazem parte de um grupo que vai na direção contrária da empolgação de políticos e autoridades com a obra. O túnel é motivo de noites insones.

Elas seriam atingidas pelo projeto escolhido para o túnel, mas isso ainda pode mudar. O edital prevê que a empresa vencedora pode alterar o trajeto da via e outros aspectos do projeto. Especialistas ouvidos pela Folha, porém, não veem isso como algo provável.

Reunião realizada no mês passado no Ministério Público, em Santos, não resultou em nada. Não há o que decidir. O percurso final do túnel, o orçamento, como serão feitas as desapropriações e o valor a ser pago serão resolvidos após o leilão e pela empresa vencedora.

O túnel será o primeiro imerso do Brasil em que a estrutura é construída com peças pré-moldadas em um dique seco, que depois serão colocadas no canal. A profundidade será de 21 metros.

Está aí a raiz da queixa dos moradores do Macuco. Eles acreditam ser possível fazer a obra sem desapropriações. Citam projetos apresentados anteriormente (chamam de “projeto porto” e “projeto Concais”, o terminal para navio de passageiros) que não previam desapropriações ou citavam apenas uma, em imóvel pertencente à União.

“O Macuco está carimbado como área do túnel. Ninguém consegue investir, reformar. Fica indefinido. Para o morador, falar que vai receber R$ 2.300 por mero quadrado ou que vai receber uma casa da Cohab é mais do que um crime”, diz José Santaella, secretário da associação do bairro.

Para os possíveis afetados pela obra, a realidade é que o bairro se tornou tão visado que há imóveis à venda desde 2013, quando se começou a falar com maior seriedade sobre a construção de túnel. Não aparece comprador.

“Eles dizem que o número de casas será definido por drone, de acordo com o número de telhados. Mas há telhados que englobam cinco casas. Como vai ficar? O metro quadrado três quadras para lá [na avenida Siqueira Campos] é R$ 8.000. Vão pagar R$ 2.300 aqui?”, questiona Sabrina Sales Reis, 45.

Há também ansiedade entre profissionais de uma atividade histórica na cidade, o transporte por catraias. “São 150 famílias que dependem deste trabalho. Estamos falando de um serviço centenário que pode acabar de uma hora para a outra. A catraia vai perder totalmente o valor”, diz Fernando Miranda Ramos, 33, presidente da Associação dos Catraieiros de Santos e Vicente de Carvalho.

A entidade administra 80 pontos de pequenos barcos a motor, com capacidade para 17 pessoas cada, que fazem a mesma travessia que será coberta pelo túnel, e em pontos semelhantes. Do estuário de Santos, no bairro da Vila Nova, ao distrito de Vicente de Carvalho, no Guarujá.

O transporte funciona todos os dias do ano, sem interrupção, desde 1907. As preocupações são a perda de passageiros e o desaparecimento do valor de mercado do barco, assim como do local de embarque/desembarque. Uma catraia e o ponto de atracação valem R$ 230 mil, como uma licença para operar. Este pode ser usado de dia ou à noite. O operador que quiser trabalhar em ambos, precisa ser dono de dois pontos.

“Tem gente aqui muito preocupada. [O túnel] Vai afetar muito, claro. A gente não sabe o quanto, mas vai diminuir o movimento. É serviço de uma história muito grande e nenhuma autoridade veio conversar com a gente sobre como vai ficar, o que pode acontecer”, se queixa Maximiliano Martins Rodrigues, 40, dono de uma das catraias.

Ele faz cerca de 40 viagens por dia e cada passagem custa R$ 2,70.

O túnel, que terá cerca de 1,5 km de extensão, sendo 870 metros submersos, também será tarifado. O pedágio vai custar R$ 6,15. Mas apenas para motos e carros. Bicicletas e pedestres poderão circular de graça. A travessia deverá ser percorrida, de automóvel, em dois minutos. Serão seis pistas, três em cada sentido, com a possibilidade de uma delas ser utilizada para transporte em VLT (Veículo Leve sobre Trilhos).

A catraia, um serviço particular, não é a única travessia entre as duas cidades que será impactado pela travessia seca.

Existe outro transporte privado que vive esta indefinição. Operado há 50 anos pela Barcas Santos-Guarujá, carrega cerca de 5.000 passageiros por dia. As embarcações navegam entre a Ponta da Praia, em Santos, e o bairro da Santa Rosa, no Guarujá.

“Poderemos avaliar melhor o impacto na travessia quando as obras estiverem concluídas e em pleno funcionamento”, disse a empresa, em nota.

A Semil (Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do Estado de São Paulo) administra também transporte de veículos e passageiros entre os dois municípios. O governo estadual não se manifesta sobre as travessias nas mãos da iniciativa privada. Apenas pelas quais é responsável.

Questionada sobre provável diminuição de passageiros, a SPI (Secretaria de Parcerias em Investimentos do governo paulista) disse que o “transporte de carros, pedestres e ciclistas continuará sendo realizado por balsas e lanchas, que são objetos de Parceria Público-Privada para modernização do serviço”. Considera que serão possíveis investimentos de R$ 1 bilhão com a aquisição de 48 novas embarcações. Sobre as catraias, a secretaria não se pronunciou por se tratar de um serviço particular.

Nem todos os residentes da região se preocupam. Há os que não levem nenhuma fé de que o túnel sairá do papel. Operador de catraia disse à reportagem algo parecido: seu pai passou sete décadas ouvindo que o túnel se tornaria realidade.

O primeiro projeto de tal obra entre as duas cidades foi divulgado em 1927. Desde então, diferentes ideias foram apresentadas, algumas vezes em formato de ponte. Nenhuma saiu do papel. Citam quando o então governador José Serra (2007-2010) apresentou maquete de uma ponte que nunca se tornou realidade.

A construção do túnel é um dos casos em que o desenvolvimento econômico prometido afeta a vida de pessoas como Luiza Braz, 73, e Lucida Jeronimo, 87. Elas moraram a vida inteira na mesma casa no Macuco e poderão ser forçadas a sair.

“Eu já briguei muito. Decidi que não vou mas a lugar nenhum. Não queria, mas se tiver deixar a minha casa, eu saio. Só quero receber o que é justo. Estou muito, muito cansada”, finaliza Maria Angélica Fernandes, moradora da José do Patrocínio que também pode ter a casa desapropriada.

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