Por três gerações, a família Liebig ganhou a vida construindo vagões ferroviários de dois andares em Görlitz, no extremo leste da Alemanha. Mas aqueles que vierem depois de Carsten Liebig agora construirão armas, não trens.
A partir do ano que vem, a fábrica de trens de 176 anos de Görlitz começará a produzir componentes para tanques de batalha e veículos de combate de infantaria, depois que a empresa de defesa KNDS interveio no final do ano passado para assumir o local que a fabricante de trens Alstom havia decidido fechar.
Como muitos fabricantes na Europa Ocidental, a Alstom fechou a fábrica como parte de um esforço maior para reduzir custos, transferindo a produção para países com salários mais baixos.
Liebig disse que, embora esperasse que o acordo melhorasse as chances de seus antigos colegas manterem seus empregos —a KNDS prometeu manter cerca de 350 dos 700 funcionários da fábrica— ele lamentou a perda de uma indústria que moldou a identidade de sua cidade natal.
“O que é profundamente triste é que ainda precisamos de produção de armas”, disse Liebig, que se aposentou em 2021 após uma vida inteira fabricando trens e bondes que transportam passageiros em países como Alemanha e Israel.
Os Liebigs não são únicos. Por toda a Alemanha, famílias se acostumaram a ver empresas nos setores automotivo, de engenharia mecânica e indústrias químicas fracassarem, levando consigo empregos bem remunerados que sustentaram gerações.
A produção nos setores mais intensivos em energia da Alemanha caiu 20% em comparação com 2021 —um ano antes de a Rússia invadir a Ucrânia e a Alemanha perder acesso ao gás barato.
Para muitos alemães que vivem no antigo leste comunista, o mal-estar atual marca a segunda onda de desindustrialização que experimentaram desde a reunificação do país em 1990.
É por isso que o rearmamento histórico da Alemanha agora oferece um raro vislumbre de esperança em um país onde quase 250 mil empregos na indústria desapareceram desde o início da pandemia.
Octavian Ursu, prefeito de Görlitz, disse que outras cidades poderiam em breve passar pelo tipo de transição industrial que está ocorrendo atualmente em seu distrito eleitoral. “À medida que grandes investimentos fluem para o rearmamento, é provável que esse tipo de mudança em locais industriais continue a ocorrer”, disse ele.
Os gastos com defesa da Alemanha aumentaram quase 80% desde 2020, atingindo mais de 90 bilhões de euros no ano passado, de acordo com estimativas da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), e o impulso de rearmamento de Berlim só deve intensificar a competição entre fabricantes de armas por mão de obra qualificada.
Quatro empresas de defesa com grande presença na Alemanha —Rheinmetall, Diehl Defence, Thyssenkrupp Marine Systems e MBDA— adicionaram juntas, nos últimos três anos, mais de 16,5 mil funcionários, um aumento de mais de 40%. Elas planejam contratar aproximadamente mais 12 mil até 2026, informaram ao Financial Times.
Em uma cerimônia realizada para marcar a transferência na fábrica de Görlitz em fevereiro, o diretor de operações da KNDS, Florian Hohenwarter, disse que a fabricante de tanques escolheu a fábrica porque já tinha “exatamente os especialistas altamente treinados de que precisamos para produzir componentes da mais alta qualidade para nossos veículos”, referindo-se principalmente a soldadores qualificados.
“Encontrar e treinar as pessoas certas” será um desafio fundamental para as empresas de defesa que buscam expandir, disse o analista do Bank of America, Benjamin Heelan. Um número crescente de empresas começou a buscar trabalhadores de indústrias em declínio, como a automotiva, “contratando-os, requalificando-os e readaptando-os”, afirmou.
Contratos governamentais lucrativos levaram empresas de armas listadas em Bolsa a aumentar significativamente os pagamentos aos acionistas. A Rheinmetall planeja aumentar seu dividendo em 42% este ano, a Hensoldt em 25% e a fabricante de caixas de engranagens para tanques Renk em 40% —movimentos que provavelmente alimentarão a pressão para reinvestir nas economias locais.
“Se agora estamos usando o dinheiro dos contribuintes alemães para segurança, então empregos também devem ser criados na Alemanha”, disse o CEO da Rheinmetall, Armin Papperger, no mês passado, ao revelar o interesse da empresa em potencialmente assumir fábricas automotivas redundantes.
No mês passado, Papperger e uma delegação da Rheinmetall visitaram uma fábrica da Volkswagen prestes a ser desativada em Osnabrück, no noroeste da Alemanha, em meio a conversas sobre uma possível aquisição. A fabricante de munições e tanques está correndo para expandir a capacidade de produção para atender a uma carteira de pedidos no valor de 55 bilhões de euros, justamente quando a montadora planeja reduzir sua produção pela metade.
A Rheinmetall, junto com a fabricante de radares e sensores Hensoldt, também se comprometeu a contratar cerca de 300 trabalhadores demitidos da Continental e da Bosch — dois dos maiores fornecedores de automóveis da Alemanha.
Os anúncios dos grupos de defesa, no entanto, representam uma pequena fração das dezenas de milhares de cortes de empregos no setor automotivo, à medida que as montadoras europeias se preparam para vendas permanentemente mais baixas. Até agora, apenas um funcionário da Continental foi transferido para uma fábrica da Rheinmetall, com as transferências dependendo de candidaturas voluntárias por parte dos trabalhadores automotivos.
Ainda não está claro o quão entusiasmados os alemães estão em se juntar à iniciativa de rearmamento de Berlim, incluindo seu apoio militar à Ucrânia —seja alistando-se como soldados ou construindo tanques.
Görlitz ganhou as manchetes em 2019 quando a cidade esteve perto de eleger o primeiro prefeito da AfD (Alternativa para a Alemanha) —um movimento que acabou sendo interrompido quando outros partidos incentivaram os eleitores a se unirem em torno de Ursu, dos Democratas Cristãos.
Mas, nas eleições locais do ano passado, a participação de votos da AfD —um partido anti-imigração que se opõe ao envolvimento alemão na guerra na Ucrânia— aumentou para 37%, e quase metade de todos os votos em Görlitz foram para partidos contrários ao apoio militar da Alemanha à Ucrânia.
Sebastian Wippel, que por pouco não se tornou o primeiro prefeito da AfD em Görlitz em 2019, disse que o exército alemão precisava de tanques, mas questionou onde mais as armas produzidas na cidade poderiam acabar.
“Os tanques sendo construídos aqui serão vendidos ou doados diretamente para a Ucrânia? Isso, é claro, não seria bom”, disse ele. A indústria de defesa, acrescentou, “não deve se tornar um meio de se preparar para a guerra, ou de colocar políticos em uma posição onde acabem se convencendo a entrar em um conflito”.
No entanto, Michael Kretschmer, primeiro-ministro do estado alemão da Saxônia e um oponente de longa data das entregas de armas à Ucrânia, recebeu bem a produção de tanques em Görlitz, onde nasceu.
“As tecnologias que serão fabricadas em Görlitz no futuro servirão para proteger a Europa. Esta é uma oportunidade enorme para a cidade e para bons empregos seguros”, disse.
A KNDS, que não respondeu aos pedidos de comentário, não assumiu nenhum compromisso público sobre seus planos de longo prazo para a usina.
Axel Drescher, um organizador do IG Metall, disse que o sindicato recebeu bem a preservação dos empregos, mas questionou quanto tempo a expansão do setor de defesa poderia durar —a menos que tanques e munições continuem a ser consumidos em guerra.
“A fabricação de tanques será um trabalho sustentável? Esperamos que não. Esperamos que as guerras terminem em breve”, disse ele.
Liebig, no entanto, adotou uma visão mais pragmática das mudanças que ocorrem em sua cidade natal. “Infelizmente, é assim que é”, disse ele. “O mundo segue em frente. Tudo o que podemos fazer é esperar que o maior número possível de empregos permaneça”.