Em 27 de dezembro, Bill Gates, o bilionário filantropo, fez uma viagem a Mar-a-Lago para jantar com Donald Trump. Algumas pessoas ao seu redor ficaram surpresas com sua decisão de ir, mas Gates quer conversar com quem estiver disposto a ouvir.
O jantar durou três horas, e Trump pareceu se divertir, disse uma pessoa próxima a ele. Eles conversaram sobre pólio —um interesse de ambos— e Gates saiu do encontro “francamente impressionado” com o interesse do presidente eleito em saúde global.
Pelo menos foi o que ele disse ao The Wall Street Journal. Seus comentários, que ele reiterou para alguns amigos, não envelheceram bem. Menos de um mês após o jantar em Mar-a-Lago, Trump tomou posse e imediatamente começou a desmantelar a infraestrutura de saúde global que sustenta o trabalho da fundação de Gates.
Na próxima semana, a Fundação Gates, em seu 25º aniversário, planeja celebrar suas conquistas, incluindo ajudar a reduzir pela metade a mortalidade infantil global desde 2000. No entanto, no que deveria ser um momento de autocongratulaçãо, a fundação, que doa US$ 9 bilhões (R$ 51 bi) por ano, está enfrentando graves ameaças tanto ao seu trabalho quanto ao seu futuro.
Dois dias depois de Trump congelar toda a assistência externa dos EUA, Elon Musk começou a desmantelar a Usaid (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional), que distribui ajuda pelo mundo —incluindo vacinas, tratamentos e tecnologias criadas em laboratórios financiados pela Fundação Gates.
Ao mesmo tempo, o governo Trump tem feito uma campanha de retaliação contra instituições —universidades, grandes escritórios de advocacia— que considera liberais demais. As organizações filantrópicas estão apreensivas, presumindo que serão o próximo alvo de sua ira.
Elas temem que Trump use seu poder para paralisar instituições de caridade por meio de investigações. E receiam um desafio ao seu status de isenção fiscal —uma ameaça que Trump fez explicitamente contra a Universidade Harvard quando esta se recusou a ceder às suas exigências.
Na avessa a riscos Fundação Gates, os dirigentes pediram aos assessores que não coloquem quase nada em e-mails ou outros materiais escritos, especialmente qualquer coisa que funcionários de Trump possam tirar do contexto. Alguns funcionários bloquearam contas públicas de mídia social e transferiram grande parte de seu trabalho para o Telegram ou Signal, aplicativos de mensagens criptografadas. (Alex Reid, porta-voz da fundação, disse que os funcionários sempre foram incentivados a ter cuidado com as comunicações.)
A cautelosa parceria que Gates tentou iniciar em Mar-a-Lago fracassou, mas ele continuou a defender sua causa. Ele se reuniu com o chefe de gabinete da Casa Branca, vários secretários do gabinete, o Conselho de Segurança Nacional e membros do Congresso.
“É uma tenda muito ampla de defensores que estamos tentando recrutar”, disse Mark Suzman, CEO da fundação, em uma entrevista.
Gates esperava encontrar um aliado no secretário de Estado Marco Rubio, um defensor vocal dos esforços para combater a malária e a pobreza infantil no passado. Mas Rubio, que supervisiona a assistência externa, recusou-se a se reunir ou falar com Gates desde a eleição, disse a fundação.
Esta reportagem se baseia em entrevistas com duas dúzias de amigos e conselheiros de Gates, funcionários atuais e antigos da Fundação Gates e seus associados, e beneficiários de subsídios da fundação, a maioria dos quais falou sob condição de anonimato.
As mudanças na abordagem de Washington deixaram Gates à deriva, dizem funcionários atuais da fundação e outros que conversaram com ele. Pessoas que o conhecem, descrevem Gates como orientado por dados, às vezes excessivamente, e dizem que ele tem lutado para alinhar as aparentes novas regras do jogo com a maneira como ele vê o mundo.
Na minha experiência, Bill é um pensador racional que quer otimizar para salvar vidas, então este mundo caótico onde as pessoas agem por ressentimento e vingança está em desacordo com isso. Estar em choque e neste ambiente completamente estranho é um golpe duplo
GOLPES DUROS E UMA RESPOSTA CONTIDA
A fundação, que está sediada em Seattle, foi iniciada por Gates e sua ex-esposa, Melinda French Gates. Eles se divorciaram em 2021, mas administraram a fundação juntos até 2024. Entidade é a maior filantrópica do país, possui um fundo patrimonial de US$ 75 bilhões (R$ 425,5 bi), emprega mais de 2.000 pessoas e tem escritórios em todo o mundo em desenvolvimento que podem rivalizar com o poder dos governos onde operam.
Por maior que seja, não pode operar sozinha. Não presta serviços diretamente, mas financia o desenvolvimento de estratégias e tecnologias e depois trabalha com governos, agências de ajuda e o setor privado para disseminá-las.
O desmantelamento da Usaid foi o primeiro golpe no estômago, mas não o último. Cortes profundos nos Centros de Controle e Prevenção de Doenças e nos Institutos Nacionais de Saúde se seguiram. Ambos eram grandes financiadores da saúde global. A maior parte da arquitetura de cuidados de saúde global financiada pelos EUA foi radicalmente diminuída ou destruída.
Programas que têm sido prioridades de Gates por décadas foram eliminados: pesquisa de vacinas para malária; entregas de pacotes de alimentos terapêuticos desenvolvidos pela fundação para crianças desnutridas; e programas africanos para fornecer tecnologias de prevenção ao HIV que a fundação ajudou a inventar.
Um golpe particularmente duro foi a decisão do governo Trump de encerrar o apoio à Gavi, uma organização que ajuda os países mais pobres a comprar imunizações infantis. Gates foi co-criador da Gavi, e em alguns momentos sua fundação foi sua maior financiadora.
A notícia de que os EUA poderiam se retirar da Gavi produziu a resposta mais contundente da entidade desde que Trump começou a cortar a ajuda externa. Na rede social X, Suzman disse estar “profundamente perturbado” com a notícia, “se verdadeira”. A redação dessa postagem, que continuou sugerindo as graves consequências dos cortes, foi intensamente debatida previamente por conselheiros, segundo uma pessoa envolvida.
A fundação sempre foi comedida em suas declarações públicas, mas tem se esforçado para ser o mais politicamente neutra possível desde que Trump venceu a eleição, dizem pessoas próximas. Alguns funcionários e aliados expressaram frustração pelo fato de Gates e a organização, que lidera grande parte do trabalho de saúde global, terem sido contidos em sua resposta ao que os funcionários veem como um nível catastrófico de cortes.
Além da postagem no X, Suzman fez algumas declarações cuidadosas relacionadas às ações do governo Trump, como o valor da Organização Mundial da Saúde e dos cuidados de saúde reprodutiva.
HATERS NA CASA BRANCA
Para pessoas agora no círculo íntimo de Trump, a Fundação Gates tem sido um alvo popular de críticas. Quando o vice-presidente J.D. Vance estava concorrendo ao Senado em 2021, ele chamou a Fundação Gates, a Fundação Ford e o fundo patrimonial de Harvard de “cânceres na sociedade americana” porque recebiam status de isenção fiscal para financiar o que ele disse ser “ideologia radical de esquerda”.
Stephen Miller, poderoso conselheiro político de Trump, atacou o foco da fundação na equidade racial e no financiamento das “ideologias mais odiosas, tóxicas e marxistas”.
E então há Musk. O homem mais rico do mundo já assinou o Giving Pledge, um compromisso filantrópico operado por Gates. Agora ele provoca Gates no X, e chamou sua filantropia climática de hipócrita porque acredita que Gates tenha vendido a descoberto as ações da Tesla.
Como chefe de uma fundação tão grande e influente, Gates é recebido em todo o mundo tal qual um chefe de Estado, e se apresentou assiduamente como apolítico. Isso mudou em 2024 quando ele fez uma doação de US$ 50 milhões (R$ 283,6 bi) para apoiar a campanha presidencial de Kamala Harris.
Depois que Trump foi eleito, Gates se propôs a fazer as pazes. Em conversas privadas, segundo uma pessoa que o ouviu, Trump mencionou Gates ao falar dos bilionários da tecnologia que costumavam desprezá-lo e agora, como Trump diz, querem ser seus amigos.
Ainda assim, o governo monitorou e foi informado sobre os laços da Fundação Gates com uma rede de doadores liberais chamada Arabella Advisors, disse uma pessoa próxima à Casa Branca.
Suzman disse a amigos que acredita que o governo Trump atacaria a fundação de várias maneiras, principalmente retirando seu status de isenção fiscal, disseram duas pessoas que conversaram com ele.
O trabalho da fundação, disse Suzman em uma entrevista, é apartidário. “Aquilo em que trabalhamos — salvar crianças de mortes evitáveis, tentar deter doenças infecciosas, proporcionar oportunidades para os mais pobres e vulneráveis —é o núcleo absoluto daquilo para o qual o status de caridade existe.”
A lei federal proíbe o presidente de usar o IRS (equivalente à Receita Federal nos EUA) para punir inimigos, mas grupos conservadores externos estão testando a hipótese. Edward Blum, que fez carreira desafiando ações afirmativas, apresentou uma queixa ao IRS contra a Fundação Gates. Ele alegou que um programa de bolsas raciais para estudantes equivalia a “discriminação racial odiosa” que tornava a fundação “inelegível para status de isenção fiscal”.
Na verdade, a fundação havia mudado a política de admissão de bolsistas meses antes, disse Reid, o porta-voz.
Mas a fundação não tornou a mudança pública até que lhe pedissem comentários sobre um artigo de opinião de Blum que o The Wall Street Journal havia publicado. A forma como isso veio à tona pareceu uma rendição, e foi retratada dessa maneira na mídia de direita.
Os líderes da filantropia também estão nervosos com um decreto de janeiro que orientou o procurador-geral a identificar instituições, incluindo “fundações com ativos de US$ 500 milhões (R$ 2,8 bi) ou mais” que poderiam ser investigadas por seus programas de diversidade, equidade e inclusão.
A Fundação Gates, assim como outras corporações e instituições, tomou medidas para diminuir a ênfase em seu trabalho de DEI, demitindo vários membros de sua equipe de diversidade e aposentando o cargo de diretor de diversidade, equidade e inclusão. Em uma aparição pública em fevereiro, Gates disse que as iniciativas de DEI às vezes “foram longe demais”.
UMA FALHA DE IMAGINAÇÃO
As potenciais consequências de uma interrupção significativa do trabalho da fundação são imensas —com os EUA se retirando da OMS, por exemplo, a fundação é agora o maior financiador do órgão. Centenas de cientistas, grupos de ajuda e ministros recorreram à fundação com pedidos desesperados de ajuda para preservar pesquisas e programas desde que as interrupções começaram em janeiro. Ela é cada vez mais vista como o último ator com recursos e compromisso para ajudar.
Suzman disse que o esforço prioritário de defesa da fundação era a preservação do financiamento dos EUA para a Gavi e para o Fundo Global de Combate à Aids, Tuberculose e Malária, uma importante organização financiada por governos, empresas filantrópicas e o setor privado.
Ele também disse que a fundação comprometeu inicialmente US$ 30 milhões (R$ 170,2 mi) para países da África e Ásia em esforços para avaliar as lacunas deixadas pelos cortes da Usaid e planejar a reestruturação de serviços essenciais.
Mas Suzman reconheceu que a fundação teria que se adaptar, agora que a maior agência de ajuda do mundo foi desmantelada e outras nações de alta renda também estavam reduzindo a ajuda.
Em uma conferência no mês passado em Vancouver, a fundação de Gates distribuiu broches estampados com uma palavra de ordem da entidade que, agora, parece discordante com o cenário que a fundação enfrenta: “Otimista”.