Além da liderança espiritual de 1,3 bilhão de católicos do mundo, o falecido papa Francisco lutou com uma tarefa mais temporal: supervisionar as finanças complexas e opacas do menor país do mundo.
Francisco chocou muitos dentro das instituições financeiras da Santa Sé com sua campanha anticorrupção de alto perfil, que incluiu uma operação policial do Vaticano em 2019 na própria burocracia da cidade-estado por causa de um negócio imobiliário questionável.
Apesar desses esforços, seu sucessor enfrenta um desafio financeiro assustador. Embora gere receita por meio do turismo, doações e investimentos, o Vaticano opera com um déficit orçamentário significativo e seu fundo de pensão enfrenta uma enorme deficiência estrutural.
Quando Francisco assumiu em 2013, as finanças do Vaticano haviam sido atormentadas por décadas de negócios desastrosos e acusações de má conduta. Em nenhum lugar isso era mais evidente do que no IOR (Instituto para as Obras de Religião), o banco do Vaticano.
Fundado pelo Papa Pio 12 em 1942 para administrar as finanças e investimentos do Vaticano, e para garantir sigilo durante a Segunda Guerra Mundial, seus escândalos abrangeram ligações com a máfia e o crime organizado, alegações de negociação com ouro nazista e conexões com a misteriosa morte de um homem conhecido como “o banqueiro de Deus”.
Francisco se propôs a colocá-lo em um curso diferente —frequentemente contra forte oposição de burocratas do Vaticano, tradicionalistas e figuras poderosas dentro da cúria que se beneficiavam do status quo.
“A resistência à agenda de reforma do Papa Francisco tem sido massiva, mas as coisas no IOR mudaram, porque fomos mais resistentes do que a resistência”, disse Jean-Baptiste de Franssu, presidente do banco do Vaticano, ao Financial Times.
O banco do Vaticano é onde organizações católicas como ordens religiosas, instituições de caridade e dioceses, bem como clérigos e funcionários da igreja, têm contas. Ele administra cerca de 5,4 bilhões de euros (cerca de R$ 35 bilhões) em ativos de clientes e registrou um lucro líquido de mais de 30 milhões de euros em 2023.
O banco de propriedade do Vaticano opera separadamente da Apsa (Administração do Patrimônio da Sé Apostólica), um fundo soberano de fato para a Santa Sé, a administração da igreja.
O terceiro pilar das finanças do Vaticano é o fundo de pensão da Santa Sé, um esquema de benefício definido para funcionários do Vaticano que tinha um passivo não financiado de quase 1,5 bilhão de euros há uma década, de acordo com relatórios financeiros obtidos pelo The Pillar, uma organização de notícias católica. Esse número provavelmente aumentou desde então, disse a publicação.
Francisco deixa um “legado misto” na reforma financeira, disse Ed Condon, editor e cofundador do The Pillar. “Em nível institucional, ele fez um ótimo trabalho: o banco do Vaticano e a Apsa eram sinônimos de práticas comerciais obscuras quando ele chegou, e agora têm um atestado de boa saúde.
“Mas, por outro lado, o Vaticano não está mais perto —na verdade, está muito mais longe— de ter um orçamento equilibrado.”
Talvez o escândalo histórico mais notório esteja relacionado ao colapso de 1982 do Banco Ambrosiano, o maior banco privado da Itália, no qual o banco do Vaticano possuía uma participação. Na época, o banco do Vaticano era dirigido pelo arcebispo americano Paul Marcinkus, cujo conhecimento de finanças se resumia a um curso acelerado de seis semanas em Harvard após sua nomeação em 1971.
Marcinkus havia se envolvido em negócios ilícitos com um banqueiro ligado à máfia e com Roberto Calvi, o poderoso chefe do Banco Ambrosiano. Mais tarde, descobriu-se que Calvi fazia parte de um esquema para lavar dinheiro através de empresas offshore, transferir pagamentos ilegais para partidos políticos italianos e financiar negócios clandestinos de armas.
O colapso do Banco Ambrosiano deixou o banco do Vaticano com cerca de 250 milhões de dólares em perdas. Pouco antes disso, o corpo de Calvi foi descoberto pendurado em um andaime na Ponte Blackfriars, em Londres. Tijolos e pedras estavam enfiados em seus bolsos, ele tinha quase 7.500 libras em dinheiro, e suas mãos estavam amarradas atrás das costas.
A morte de Calvi foi inicialmente considerada suicídio, mas um tribunal italiano posteriormente determinou que foi um assassinato. Ninguém foi condenado pela morte.
Três décadas depois, quando Francisco foi eleito, o banco do Vaticano permanecia em desordem. Naquele ano, seu diretor e vice-diretor renunciaram após a prisão de um alto clérigo italiano por acusações de corrupção e fraude. O Moneyval, o órgão de vigilância anti-lavagem de dinheiro do Conselho da Europa, alertou que o banco corria o risco de ser incluído na lista negra.
Francisco se propôs a enfrentar o problema, instalando uma gestão financeira mais profissional para reduzir a influência clerical. Em 2014, de Franssu, ex-CEO da Invesco Europe, foi nomeado presidente do IOR, que havia divulgado seu primeiro relatório anual meses antes. Milhares de contas bancárias inativas foram fechadas.
Mas o processo de reforma foi turbulento. Em 2015, Libero Milone, ex-presidente da Deloitte na Itália, foi nomeado auditor-chefe da Santa Sé, mas foi destituído dois anos depois após solicitar informações sobre “centenas de milhões de dólares” mantidos fora dos livros por entidades ligadas ao Vaticano na Suíça.
Milone, que está movendo uma ação por demissão injusta, disse que restaurar a confiança dos católicos na integridade financeira do Vaticano seria fundamental para reverter o declínio nas doações. De acordo com o Vaticano, estas caíram 23% entre 2015 e 2019 e continuaram a diminuir.
“A Igreja só sobreviverá se acertar suas finanças”, disse ele. “A única maneira de acertarem suas finanças é se os doadores tiverem fé de que serão gastas por causas justas —da maneira certa, no valor certo.”
Ainda assim, houve progresso. Quando de Franssu assumiu o IOR, apenas um banco internacional estava disposto a atuar como banco correspondente, fornecendo serviços bancários em outras jurisdições em seu nome. “Agora há mais de 45”, disse ele.
O IOR iniciou ações judiciais em várias jurisdições contra seu ex-gestor de fundos italiano baseado em Londres, alegando que o banco foi fraudado em um grande investimento imobiliário em Budapeste em 2012. Esse financista, Raffaele Mincione, contestou as alegações e foi absolvido de fraude em um caso no Tribunal Superior de Londres, embora o juiz tenha considerado que o Vaticano tinha motivos para se considerar “completamente decepcionado”.
Em 2017, o banco do Vaticano aderiu à iniciativa da Área Única de Pagamentos em Euros da UE para pagamentos transfronteiriços. Quatro anos depois, garantiu a classificação mais alta possível do Moneyval para combate à lavagem de dinheiro e ao terrorismo. Logo depois, Francisco decretou que todos os ativos geridos para instituições da Santa Sé devem ser supervisionados pelo banco.
As autoridades do Vaticano sinalizaram atividades suspeitas que levaram à descoberta de um escândalo sobre um empreendimento imobiliário na Sloane Avenue, em Londres, no qual o Vaticano investiu a partir de 2014, resultando em perdas de 200 milhões de euros para a Santa Sé.
Em 2019, os cardeais ficaram atônitos quando a polícia do Vaticano invadiu a Secretaria de Estado do Vaticano, a burocracia central da cidade-estado, por causa do investimento. A investigação levou à condenação do cardeal Giovanni Angelo Becciu, outrora uma figura poderosa, por múltiplas acusações de peculato e fraude.
A abordagem pública —Francisco disse que “esta é a primeira vez que o pote é aberto de dentro para fora, e não de fora para dentro”— foi “um grande choque para alguns internamente”, disse de Franssu.
Na sequência, Francisco retirou da Secretaria de Estado investimentos no valor de centenas de milhões, colocando seus ativos financeiros sob o controle da Apsa.
A Apsa agora administra todos os 5.000 ativos imobiliários da Santa Sé, principalmente em Roma, mas incluindo propriedades na França, Reino Unido e Suíça. Também assumiu a gestão de doações de católicos em todo o mundo, um fundo conhecido como Óbolo de São Pedro.
Os ativos sob gestão da Apsa estavam próximos de 3 bilhões de euros em 2023. Isso incluía ativos móveis —principalmente títulos de curto prazo e dinheiro— e imóveis, apenas 30% deles alugados para lucro. A Apsa registrou lucros de 46 milhões de euros em 2023, acima dos 38 milhões do ano anterior.
A maior parte das receitas do Vaticano vem de imóveis e universidades, escolas e hospitais católicos. Estes geraram mais de 65% da receita de 770 milhões de euros da Santa Sé há três anos, o número mais recente disponível, de acordo com o conselho econômico do Vaticano.
Cerca de 24% vieram de doações discriminadas —fundos destinados a uma causa específica— e 6% do Óbolo de São Pedro. O restante veio do banco do Vaticano e do turismo.
Francisco impôs cortes salariais aos cardeais e procurou conter outros gastos. O Vaticano também vendeu alguns ativos imobiliários, segundo o The Pillar. Mas as demonstrações financeiras de 2023 mostraram que o déficit operacional da Santa Sé era de 83 milhões de euros. Seu fundo de pensão alertou em novembro que não seria capaz de cumprir suas obrigações a médio prazo.
O conclave para eleger o 267º líder da igreja começa na próxima semana. Dependendo de quem sair vitorioso, as finanças podem ou não continuar sendo uma prioridade, disse uma pessoa próxima ao Vaticano.
Em última análise, os esforços de reforma do Papa Francisco o colocaram contra “metodologias enraizadas no Vaticano” e “disputas profundamente arraigadas em torno do dinheiro”, disse Condon. “Dinheiro é poder no Vaticano… e muito disso é muito zelosamente guardado.”
Ele acrescentou: “No final, o Papa Francisco foi de certa forma conquistado pelo grande mantra do Vaticano: ‘mas sempre fizemos assim’. E o problema é que a maneira como sempre fizeram está levando-os muito perto da beira de uma grave crise de liquidez.”