Executivos com mais estrada no setor elétrico contam que a usina do Rio Xingu, no Pará, havia sido amaldiçoada pela errônea escolha do nome original, Kararaô. O termo, até considerado sagrado por alguns, pode ser traduzido, do idioma caiapó, como “grito para a guerra”. Os índios atenderam. Mesmo depois da troca do nome para Belo Monte, o projeto não encontra paz.
Passados quase dez anos desde que as primeiras turbinas foram ligadas, a Norte Energia, empresa que tem a concessão, já contabilizou R$ 8 bilhões para cumprir mitigações socioambientais, o dobro do previsto inicialmente, bancando até obras de caráter público. Muitos especialistas do setor já não têm dúvidas sobre a importância da usina para a estabilidade do sistema elétrico nacional. Ainda assim, Belo Monte segue sendo criticada entre ambientalistas e tem pela frente um novo desafio: as mudanças climáticas.
Belo Monte fez parte do conjunto de empreendimentos qualificados como estruturantes e defendidos pelo Estado brasileiro desde a década de 1970. Foi a força da máquina estatal que viabilizou uma obra tão polêmica e com tal nível de interferência socioambiental. Porém, após a capitalização do grupo Eletrobras, principal sócio da Norte Energia, com 49,88% de participação, a conta ficou para uma empresa agora privada —e os acionistas entendem que o desafio está posto.
“É importante destacar que um projeto dessa magnitude, numa região como a Amazônia, tem características diferentes. O empreendedor chega muitas vezes primeiro que o Estado, e isso gera uma série de desafios, porque muitas vezes o empreendedor tem uma visão de prazo e cronograma de execução de seu projeto, e o Estado tem outras prioridades”, explica Paulo Roberto Pinto, presidente da Norte Energia.
“Isso aconteceu em Belo Monte, e muitas atividades que a Norte Energia tem hoje em seu portfólio conversam mais com o Estado do que propriamente com o projeto, o que exigiu dos acionistas um aporte adicional significativo.”
Para ter as licenças e operar, Belo Monte cumpre o mais extenso plano de mitigação já aplicado a um empreendimento do gênero, explica o superintendente Socioambiental e do Componente Indígena da empresa, Bruno Bahiana. Oficialmente, são 78, bem amplas e complexas, mas há inúmeros penduricalhos adicionais. Algumas obrigações são permanentes, outras duram enquanto for determinado pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).
Em Altamira, a Norte Energia construiu o aterro sanitário, ampliou o abastecimento de água e instalou o sistema de saneamento, o que incluiu fazer 510 Km (quilômetros) de rede e conectar mais de 19 mil imóveis. Hoje, 92% do município é atendido por rede de esgoto, no estado que tem as piores coberturas do país. Em Belém, fica abaixo de 20%.
A empresa também colocou de pé e equipou três hospitais e 32 unidades básicas de saúde. Implantou um projeto de combate à malária que reduziu os casos em mais de 90%. Construiu um presídio e uma Delegacia Regional. Financiou 492 salas de aulas de escolas públicas e cinco municípios da região.
Muitas obrigações têm relação com a natureza do empreendimento. A Norte Energia construiu seis bairros com infraestrutura completa para remover cerca de 20 mil pessoas que seriam atingidas pela usina. Parte delas vivia em palafitas, alijada de benefícios básicos, como água encanada, mas ainda assim não foi uma transição serena.
“No começo a gente ficou receoso, porque não sabíamos se íamos para longe, se perderíamos contato com vizinhos e parentes, com o trabalho, mas depois, vimos que a mudança foi para melhor”, explica Jorgemir Nogueira, o Mica, chefe comunitário do bairro Jatobá, em Altamira, primeiro bairro entregue pela empresa.
Entre as obrigações ambientais da empresa está recompor e preservar a floresta. A APP (Área de Preservação Permanente) sob sua responsabilidade tem 26 mil hectares, o equivalente a 36 mil campos de futebol. Desde 2013, plantou 2,3 milhões de mudas de 164 espécies nativas, como mogno e castanheira.
Também assumiu parte do cuidado com os peixes. O risco para a vida aquática é alvo de intensos debates até hoje, porque a usina interfere na vazão de um trecho chamado Volta Grande do Xingu, afetando a pesca, sustento de muitas famílias. Pescadores ainda hoje reclamam da redução na oferta. A região também é habitada por exemplares de rara beleza, ornamentais, caçados e comercializados ilegalmente, como o Acari Zebra. Ameaçado de extinção, chega a custar US$ 2.000.
A empresa mantém o Laboratório de Aquicultura de Peixes Ornamentais do Xingu, em Altamira. O local recebe, por exemplo, peixes apreendidos e exemplares para estudo que são acompanhados por pesquisadores da UFPA (Universidade Federal do Pará).
“Já conseguiram a reprodução em cativeiro de alguns tipos, como o primo marrom do Acari, mais raro ainda”, diz o bolsista Fábio Barros, doutorando da UFPA que atua no laboratório.
A empresa monitora também a escada de peixes que construiu para viabilizar o trânsito no período de procriação na piracema. No local, faz chipagem e permite o acesso de pesquisadores.
“Mais de seis milhões de peixes, de 110 espécies, passaram por aqui, alguns ameaçados de extinção, como o pacu-capivara, e 5.000 foram chipados”, diz o biólogo Johnnes Santos, também da UFPA, que monitora o STP (Sistema de Transposição de Peixes).
A Norte Energia ainda tem a obrigação de vistoriar o consumo proteico da população local, que na prática é uma outra maneira de medir a oferta de peixe.
O atendimento aos índios é um capítulo à parte. A empresa não perde a oportunidade para reafirmar que não alagou nenhuma terra indígena e que, do total investido, R$ 1,3 bilhão foi para essas comunidades, que abarcam nove etnias.
Vários programas ganharam projeção. Um deles ocorre na Escola Municipal Ensino Infantil e Fundamental Kirinpan Kuruay, onde se leciona uma disciplina curiosa para quem mora no meio da Amazônia: robótica. A equipe Kuruaya Itaibitxim, dessa classe, foi destaque na etapa regional no Torneio Sesi de Robótica First Lego League.
“Vocês podem se perguntar o que índios vão fazer numa aula de robótica. Pois essa turma criou um robô que espanta predadores naturais de tartarugas, para proteger ninhos. Testamos e funcionou. Foi possível liberar o caminho para que 4.000 tartarugas pudessem adentrar o rio”, afirma o professor da disciplina, Rafael Souza.
A empresa mantém também projetos culturais, de revitalização de línguas, fomento ao artesanato e de geração de renda. Cinco marcas de chocolates indígenas, por exemplo, nasceram dessas iniciativas.
“Com nosso chocolate levamos o nome da nossa comunidade para o mundo” diz Katiana Xipaya, criadora da Sídja Wahiü (que na língua do povo Xipaya significa “mulher guerreira”). Ela toca o empreendimento com outras famílias da comunidade Jericó 2, na Volta Grande do Xingu. O chocolate tem 72% de cacau, cultivado ali mesmo, e frutas desidratadas, também processadas localmente.
“Já tínhamos essa produção. Meu avô desidratava frutas. Mas com o branco vimos que podíamos ser protagonistas de algo maior.”
No aspecto técnico, propriamente dito, nos últimos anos, Belo Monte concorre ao posto de maior fornecedora de energia elétrica entre as grandes usinas movidas a água. A disputa é com Itaipu e Tucuruí. Chegou a ser líder em 2022, caindo para segundo lugar em 2023, e terceiro, em 2024, ano de forte seca na região Norte. Em ano de boas chuvas, Belo Monte chega a atender 12% de toda a demanda de energia do país, explica o superintendente de Operações da Norte Energia, Sandro Deivis dos Santos.
É uma virada nas expectativas pessimistas. A revisão do projeto para amenizar impactos sobre o meio ambiente e comunidades indígenas reduziu a área alagada da usina, de 1.200 km² (quilômetros quadrados) para cerca de 500 km² —e por conseguinte, a capacidade de produção. Belo Monte virou uma usina a fio d’água, ou seja, não armazena água e depende do fluxo do rio Xingu, onde foi instalada.
O pico da capacidade máxima de 11.233 MW (megawatt) é alcançado entre fevereiro e maio, quando o rio atinge as vazões máximas. Nos meses seguintes, as 18 turbinas da casa de força principal e as outras seis na casa de força complementar, na hidrelétrica Pimental, são progressivamente desligadas. Na média, o complexo gera 4.571 MW, ou cerca de 40% da capacidade instalada.
“Belo Monte pode ser impopular até hoje, mas a grande verdade —e a gente precisa ser justo— é que se tornou essencial para o abastecimento energético do país”, afirma o doutor em Engenharia Luiz Augusto Barroso, CEO da consultoria PSR, uma das mais prestigiadas no setor, e ex-presidente da EPE (Empresa de Pesquisa Energética), entidade pública responsável pelo planejamento da área de energia.
Quem estuda o clima, no entanto, alerta que toda essa dinâmica vai ser colocada em xeque. Um deles é o cientista Carlos Nobre, reconhecido mundialmente por contribuições técnicas sobre mudanças climáticas e proteção da Amazônia.
Em 2013, quando estava na Secretaria de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, Nobre foi acionado pela pasta de Minas e Energia para fazer uma avaliação sobre os eventuais impactos da mudança climática para Belo Monte.
Para coordenar o estudo, Nobre convidou o pesquisador e professor Roberto Schaeffer, do Programa de Planejamento Energético da COPPE/UFRJ (Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Schaeffer conta que foi além: “Como o sistema elétrico brasileiro é interligado, para saber como seria a operação de Belo Monte no futuro, não bastaria olhar a vazão do Xingu. Avaliamos todos os rios.”
No estudo, os cenários de chuvas foram transformados em vazão de rios, e com isso conseguiram ver como diferentes rios brasileiros poderiam ser afetados pelas mudanças climáticas, identificando vulnerabilidades de todo setor elétrico.
“O que vimos, e confirmou estudos anteriores, é que mudança climática no Brasil, em princípio, deve levar a uma savanização do Norte e a um Nordeste mais seco”, diz o pesquisador.
“Isso significa que os contratos de venda de energia para 20, 30 anos à frente nessas regiões podem não se confirmar, deixando um buraco na oferta de energia. As fortes secas recentes na região Amazônica, e seu impacto sobre a geração, são aderentes aos cenários de longo prazo que encontramos lá atrás. Já está acontecendo.”