Em sua delação ao MPF (Ministério Público Federal), o ex-diretor financeiro da Americanas Fabio Abrate citou o nome do bilionário Beto Sicupira, um dos principais acionistas da companhia, apontando sua dinâmica de comunicação com o ex-CEO Miguel Gutierrez, denunciado pelo órgão como um dos responsáveis pela fraude na varejista.
Em depoimento prestado por Abrate em novembro de 2024, o procurador Paulo Sergio Ferreira Filho lhe pergunta como era a hierarquia do comando da fraude e como ele a escalonaria.
Em sua resposta, Abrate cita os nomes de Miguel Gutierrez e Anna Saicali. Em seguida, os define como “praticamente a mesma pessoa”, e completa que tudo o que Gutierrez sabia também era conhecido por Saicali. A executiva ocupou cargos de direção na companhia até 2023 e, assim como Gutierrez, foi denunciada pelo MPF no caso Americanas.
“Quando a Anna chegava, o Miguel já tinha vindo. Quando Miguel ia, ela já voltou. Eles se falavam 100% do tempo sobre tudo. E vamos falar mais à frente. Assim era a dinâmica de Miguel com Beto [Sicupira]. De Miguel com [Eduardo] Saggioro”, disse Abrate.
Sicupira é um dos bilionários que formam o grupo dos maiores acionistas da Americanas, ao lado de Jorge Paulo Lemann e Marcel Telles. Dos três, foi ele quem mais acompanhou a história da empresa por décadas, tendo atuado como presidente do conselho de administração e diretor-presidente no passado.
Saggioro é sócio da LTS, empresa que reúne investimentos do trio. Ele assumiu a presidência do conselho de administração da Americanas em 2020, quando Sicupira deixou o cargo para permanecer como conselheiro até 2024.
“E vocês devem ter percebido nos emails. Tudo o cara de baixo comunica para o cara de cima. Isso vem do estagiário. Ninguém era autônomo. Por mais poder que você tivesse, eu, o Fábio, não tomava nenhuma decisão sozinho. Zilhões de emails, zilhões de WhatsApp, perguntando, questionando, ‘vou por esse caminho? Vou por outro caminho? Chegou isso aqui, posso responder aquilo lá?’ Eu fazia isso para cima, Anna fazia isso para cima, Miguel fazia isso para cima”, disse Abrate.
Procurada pela Folha, a assessoria de Sicupira e Saggioro respondeu, em nota, que Abrate é categórico ao indicar o ex-CEO Miguel Gutierrez como o comandante do esquema. “Supor que conselheiros soubessem dos crimes atribuídos aos ex-diretores apenas porque se comunicavam intensamente com eles sobre as demais questões da companhia é uma ilação infundada e sem sentido, que apenas tem por objetivo desviar a atenção daqueles que as investigações têm apontado como responsáveis pela fraude”, afirma o comunicado.
A citação de Sicupira e Saggioro por Abrate não interferiu nas conclusões do MPF sobre o caso na primeira denúncia, que foi concluída no fim de março. O órgão apresentou denúncia contra 13 ex-executivos e ex-funcionários da Americanas, dizendo que o conselho de administração foi ludibriado por eles, e que os acionistas de referência foram levados a suportar um prejuízo de R$ 12 bilhões. Sicupira e os outros membros do conselho não estão entre os denunciados. O MPF ainda investiga o caso.
No documento da denúncia elaborado pelo MPF, o nome de Sicupira é mencionado nas transcrições das falas de Abrate em três momentos: dois quando o delator relata o preparo de uma apresentação que seria feita ao “Beto” sobre o legado de Gutierrez, além da menção na resposta à pergunta sobre a hierarquia do comando da fraude.
A Folha teve acesso a trechos da delação de Abrate, que citam o nome do empresário em outros momentos. Em um deles, quando Abrate diz que Miguel Gutierrez e Anna Saicali “sabiam de tudo” na empresa, o advogado do delator, Nilo Batista, lhe pergunta: “Alguma outra pessoa aqui que você acha que também sabia tudo que o Miguel e o que Anna sabiam?”. Abrate responde: “Beto”.
A reportagem perguntou ao MPF se Abrate foi questionado pelo órgão sobre qual seria o conhecimento de Sicupira, mas o MPF não respondeu. Disse apenas que a delação está sob sigilo.
A Folha também procurou a defesa de Abrate perguntando se ele tem provas para sustentar suas afirmações. Seu advogado respondeu que o caso é confidencial e não quis comentar.
Também em nota, a assessoria de Sicupira e Saggioro afirma que eles não têm acesso à íntegra das delações, que estão ainda sob segredo de Justiça.
“De qualquer modo, supostos ‘achismos’ levianos de delatores não contradizem as provas e as conclusões das diversas investigações realizadas sobre o caso, que apontam a antiga diretoria como a cúpula da fraude”, diz o comunicado.
A assessoria também afirma que comunicação entre o conselho e a diretoria é requisito de boa governança.
“Todas as investigações que vêm sendo conduzidas, há mais de dois anos, vasculharam, à exaustão, tais comunicações e são uníssonas em reconhecer que não há nenhum indício de que qualquer conselheiro tenha participado da fraude ou sido informado sobre os seus instrumentos, notadamente as operações de risco sacado e os contratos de VPC [verba de propaganda cooperada] fictícios. Pelo contrário, os investigadores encontraram inúmeras mensagens da antiga diretoria omitindo e/ou negando a existência dessas operações aos conselheiros e aos seus assessores, apresentando-lhes resultados fabricados e combinando entre si formas de enganá-los. As investigações também apontam que tampouco o CEO e o CFO que tomaram posse no início de 2023 conheciam a real situação financeira da companhia”, diz a nota.
O comunicado de Sicupira e Saggioro diz ainda que os únicos beneficiados pela fraude foram os ex-diretores. “Venderam centenas de milhões de reais em ações, cientes da real situação da empresa, como apontado pela CVM (Comissão de Valores Mobiliários). O ex-presidente do conselho e acionista de referência citado na reportagem [Sicupira], por outro lado, desconhecendo os verdadeiros números, investiu muito mais na companhia do que dela retirou e está entre os maiores prejudicados por tais crimes, como apurado em perícia conduzida pela Polícia Federal”, afirma a nota.