A aprovação da LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), há 25 anos, envolveu uma ampla negociação que deveria servir de inspiração para resolver problemas atuais, avalia o economista José Roberto Afonso, um dos pais da lei que até hoje é marco das finanças públicas brasileiras.
“Está faltando os Poderes sentarem juntos, os governos sentarem juntos, com o espírito de ouvir e ceder. A gente só vai resolver muitos dos embates quando sentar à mesa e conversar, não só no nível superior, como também no nível técnico”, diz em entrevista à Folha.
Ele critica o fato de hoje, dentro do governo, a equipe econômica atuar na base do “cada um por si” e destaca a necessidade de haver pactuação não só entre agentes políticos, mas também entre os atores econômicos. “Estamos entrando numa crise mundial. A crise abre oportunidade para fazer novas reformas e adotar novas posturas.”
Qual é o principal legado da LRF?
Colocaria, na verdade, dois legados. Primeiro, uma mudança cultural em relação a como você trata as contas públicas. Segundo, a democratização de uma lei que trata de regras fiscais. A lei envolveu uma intensa negociação e o apoio de todas as esferas de governo e de todos os Poderes. É uma lição que, diante de algumas dificuldades, [deveríamos] voltar lá atrás, recuperar.
Foi um processo democrático impactante. O presidente [Fernando Henrique Cardoso] falou ‘não vamos mandar para o Congresso, vamos publicar como anteprojeto e receber sugestões’. Foram 5.000 emendas pela internet no ano de 2000. Ainda não tinha a potência de redes sociais. E muitas das sugestões foram incorporadas. Mas o principal a gente negociou com os principais atores, em particular com os governos estaduais e municipais.
O que mudou a partir dessas negociações?
Por exemplo, uma coisa que tem na lei até hoje: os limites de pessoal separados por Poder. Esses limites já existiam antes, só que não funcionavam, porque eram para o governo como um todo. Os governadores falaram ‘não adianta, tem que dividir por Poder’.
A oposição, na época liderada pelo PT, apresentou várias sugestões que foram incorporadas. Chegou na hora, eles votaram contra. Mas o presidente falou: ‘se as propostas são boas, não tenho problema de vício de origem’. Destacaria duas. O Banco Central, até a LRF, emitia títulos. A lei proibiu, e foi uma emenda do PT. A outra foi obrigar o presidente do BC e o ministro da Fazenda a irem periodicamente ao Congresso prestar contas.
Não foi uma coisa simples. Depois, o STF [Supremo Tribunal Federal], quando foi julgar uma ação da Associação de Magistrados e de Tribunais de Contas contra a LRF —por acaso o pessoal que está envolvido hoje na questão de salários extrateto— aprovou [a constitucionalidade da lei] por um voto, sendo que este voto mudou de posição.
Fala-se hoje na deterioração do processo orçamentário. Por que estamos nesta situação?
Acima de tudo, está faltando os Poderes sentarem juntos, os governos sentarem juntos, com o espírito de ouvir e ceder. A gente só vai resolver muitos dos embates quando sentar à mesa e conversar, não só no nível superior, como também no nível técnico.
Isso remete a uma lacuna da LRF. A lei prevê um Conselho de Gestão Fiscal. Teria representantes da União, dos estados e municípios e de outros Poderes. O projeto foi enviado e está parado.
A que o sr. atribui isso?
Brasília sente que não tem que conversar, submeter, ouvir críticas ou sugestões de estados e municípios. E entre os Poderes, cada um é independente.
Temos um subregime que só vale para a União e foca a dívida. Chamam de arcabouço. Eu acho esse nome horrível. Arcabouço é coisa de presídio, prisão. E não adianta só atuar em cima do governo federal. Mais da metade do gasto e da arrecadação é de estados e municípios.
A dívida de estados e municípios tem limite, a federal não tem. Somos uma federação, é uma questão de postura, isonomia. Como você tem credibilidade para exigir dos outros algo que você não faz? É fácil chegar e dizer ‘esse aqui está gastando demais, essas emendas parlamentares aqui são excessivas’.
O Congresso também não precisaria estar disposto a ceder na questão das emendas?
Todos têm que ceder. Precisa construir esse espírito que teve lá atrás. Vamos ser francos, não adianta chegar para o Congresso e falar ‘para de fazer emenda’. Não vai parar. É melhor ter um banco de projetos, inserir num planejamento de longo prazo.
De novo, a LRF não foi um decreto. Como convenceu? Você entrou junto e falou: ‘não dá para continuar assim, vamos fazer outra coisa’.
A LRF foi a principal baliza por muitos anos. Diante dos recentes desequilíbrios, tentou-se outras regras, como o teto de gastos e o arcabouço fiscal. Por que elas não se mostraram efetivas?
Não adianta chegar com o regramento técnico perfeito sem ter uma pactuação política e democrática. A gente tem pecado nisso. Temos que melhorar.
Uma coisa grave que falta hoje e que deixou a lei capenga: não ter uma lei geral de contas públicas. A nossa lei [de finanças] é de 1964, anterior à ditadura. [Ela regulamenta] Como elaborar o Orçamento, contabilizar o gasto, aprovar as contas. Quando a gente trabalhou na LRF, o Congresso já estava examinando uma revisão, mas nada aconteceu. Nenhum governo de esquerda, direita, de centro, ninguém pede isso. A regulação básica de como se faz o Orçamento era para estar nessa lei, não na LRF.
Outra coisa que está faltando é análise. A gente aprova mudanças sem ter um diagnóstico consistente, coerente e detalhado. Não tem problema de dados, mas nós não temos análises técnicas, a meu ver, na mesma rapidez e intensidade. E, com todo respeito aos meus colegas, vejo muito amadorismo no debate fiscal no Brasil. Muita gente que não tem formação acadêmica ou experiência na área trata de finanças públicas. A discussão também é muito contaminada por posições políticas e ideológicas.
E qual é seu diagnóstico, para além da falta de articulação política?
Na dívida pública, o problema é a União. Quanto dessa dívida cresce por gastar mais do que arrecada e quanto é contaminado pelos juros? E qual o impacto do câmbio? Essa relação entre fiscal, monetário e cambial é pouco estudada no Brasil, ou não existe. Ou, em geral, cada um faz a sua parte. Como se a cabeça funcionasse separada do braço e do pé. Cada um tem uma funcionalidade, mas todos estão interligados.
Falta uma visão maior sobre macroeconomia. A dívida pública no Brasil cresceu? Sim, mas se você olhar o que está acontecendo com a dívida pública dos Estados Unidos e da China, o Brasil é nada.
Vários agentes têm uma visão diferente, com maior preocupação em relação à dívida.
Minha opinião pessoal é que precisa discutir a dívida pública e a política fiscal dentro da política econômica.
Mas isso significa exatamente o quê? Pensar no efeito dos juros sobre a atividade?
Sim. E a dívida pública é alta, mas para quem? Qual é o risco? Os bancos fazem testes de estresse da dívida privada, vamos fazer da pública também.
Por que os bancos são contra ter um limite para a dívida pública? É uma coisa paradoxal. Reclamam que a dívida é alta, mas querem limitar o fluxo, não a dívida. Quando tiver uma crise financeira importante, quer que o governo socorra, mas não aceita que socorra agricultores ou industriais. Qual é a coerência?
A pactuação não é só entre os agentes políticos, é entre os agentes econômicos. Dentro do governo, não existe equipe econômica. É cada um por si. Enquanto você ficar cuidando do seu quadradinho, realmente corre o risco de formar expectativas olhando só o galho e não a árvore inteira.
Estamos entrando numa crise mundial. A crise abre oportunidade para fazer novas reformas e adotar novas posturas.
Qual é o desafio fiscal dos próximos anos?
Precisa discutir a nova reforma previdenciária. Não só do INSS [Instituto Nacional do Seguro Social], como também dos estados e dos grandes municípios. Os estados mais endividados, leia-se Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro, há dez anos a folha de inativos deles já era maior do que a folha de ativos. Só que o resto vai caminhando para isso. O problema está dado.
Raio-X
José Roberto Afonso, 64
É economista e contabilista. Tem pós-doutorado em Administração Pública pela Universidade de Lisboa. Foi assessor técnico especial do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e da Assembleia Nacional Constituinte. Participou da elaboração da Lei de Responsabilidade Fiscal, durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso. É professor do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público) e da Universidade de Lisboa.