Por alguns dias em março, anime e mangá quebraram a internet. Personagens de olhos arregalados e aparência fofa se espalharam pelas redes sociais, desenhados no chamado estilo Studio Ghibli —nome dado em referência aos cérebros criativos por trás de “Meu Amigo Totoro”, “A Viagem de Chihiro” e “O Castelo Animado”.
Infelizmente para o Studio Ghibli e para a indústria criativa japonesa em geral, este não foi um projeto deles. A americana OpenAI estava exibindo seu mais novo aplicativo de geração de imagens. Tudo o que os usuários precisavam fazer era carregar uma foto ou digitar uma descrição do que queriam ver, e uma imagem apareceria.
A “Ghiblificação”, como ficou conhecida, gerou acusações de que a IA estava tanto minando uma forma de arte quanto deixando de compensar seus criadores. Respondendo às críticas, a OpenAI insistiu que não permitia a geração de imagens no estilo de “artistas vivos individuais”, mas permitia “estilos mais amplos de estúdios”.
No Japão, o furor foi especialmente intenso —destacando como o país corria o risco de perder o controle de um de seus ativos criativos mais valiosos quando este estava mais popular do que nunca.
Nos últimos anos, o anime japonês (uma transliteração abreviada do substantivo inglês “animation”) passou de um nicho de fãs para um dos mais potentes vetores de soft power do Japão.
Seus estimados 800 milhões de fãs incluem estrelas do esporte, músicos e até políticos. O jogador da NFL Jamaal Williams e a rapper Megan Thee Stallion já falaram sobre seu amor por séries como “Naruto” e “Pokémon”. Shigeru Ishiba, primeiro-ministro do Japão, uma vez se vestiu como o vilão Majin Buu de “Dragon Ball Z”, a mais recente parte de uma franquia de longa duração.
Espera-se que o mercado global de anime quase dobre de US$ 31,2 bilhões (R$ 177,4 bilhões) em 2023 para US$ 60,1 bilhões (R$ 341,7 bilhões) até 2030, segundo um relatório de 2024 do banco de investimento Jefferies.
“Este pode ser o auge da cultura pop japonesa”, diz Matt Alt, autor de “Pure Invention: How Japan Made the Modern World”.
Depois que séries de anime se tornaram sucessos surpreendentes na Netflix e em outras plataformas de streaming durante a pandemia, estúdios internacionais viram o apelo de seu extenso catálogo de personagens e enredos, principalmente porque as franquias de super-heróis têm fracassado.
Empresas globais de private equity estão ávidas para comprar empresas de entretenimento japonesas e a valiosa propriedade intelectual que possuem.
Mas à medida que a popularidade do anime e do mangá —os quadrinhos dos quais muitos personagens e histórias de anime são derivados— cresce, os estúdios japoneses e o governo do país estão cada vez mais preocupados que o valor financeiro esteja desaparecendo no exterior.
O que estamos começando a ver das empresas de anime é uma consciência de que o lado de produção e distribuição da indústria é ineficiente. Os intermediários estão ganhando muito dinheiro, mas isso não está chegando aos criadores
Enquanto talvez 90% das vendas do setor de jogos sejam capturadas por empresas japonesas, para os estúdios de anime a cifra é inferior a 10%, de acordo com o Ministério da Economia, Comércio e Indústria do Japão, usando estimativas do grupo de análise de mídia Humanmedia, e da Associação de Animação Japonesa.
Distribuidores, plataformas de streaming e empresas de merchandising também ficam com uma fatia do bolo, e downloads ilegais também são um grande problema.
Somando-se ao desafio estão os problemas internos da indústria de animação do Japão. O anime tradicional é extremamente caro de produzir: segundo uma estimativa da Academia de Animação Yoyogi, uma equipe de produção de cem pessoas pode levar dois meses para produzir um único episódio de 30 minutos, a um custo de 20 milhões de ienes (US$ 140 mil ou R$ 796 mil).
Os estúdios têm sido criticados por baixos salários e práticas de trabalho exploratórias tanto para animadores quanto para atores. Como em muitos outros setores criativos, a IA poderia ajudar a simplificar processos de produção trabalhosos, mas também é percebida como uma ameaça.
“A força da propriedade intelectual e do anime do Japão está sendo reconhecida em todo o mundo”, diz Keiji Ota, que ostenta o notável título de “diretor-chefe de Godzilla” na Toho, uma das maiores redes de cinema do Japão e um grande estúdio, sendo responsável por cuidar dos direitos de seu personagem fictício mais valioso. “Neste momento, a forma de expandir para o exterior é o maior desafio.”
A indústria de conteúdo japonesa —incluindo jogos, publicações, filmes, TV e animação— viu as vendas no exterior triplicarem durante a última década, para um valor estimado de 5,8 trilhões de ienes em 2023 (R$ 226 bilhões).
“O valor de exportação da indústria de conteúdo é maior que os setores de aço, petroquímicos e semicondutores”, diz Minoru Kiuchi, ministro de segurança econômica do país e o homem agora responsável por sua estratégia de anime e mangá. O governo agora quer pressionar ainda mais, diz Kiuchi, aumentando as vendas de conteúdo no exterior para ¥20 trilhões até 2033.
No entanto, esforços anteriores para colher os lucros internamente têm lutado. Em 2013, o governo lançou uma iniciativa chamada Cool Japan, que financiou uma plataforma de streaming de anime malsucedida chamada Daisuki, que visava rivalizar com a Netflix.
O Cool Japan foi relançado várias vezes —mais recentemente no ano passado, com maior ênfase em subsidiar melhores condições de trabalho, combater a pirataria e promover a expansão no exterior.
Para o Japão, um país com uma população envelhecida que há muito tempo está preso em um ciclo de deflação, a pressão para monetizar um produto genuinamente bem-sucedido de origem nacional é tangível.
“Empresas e criadores japoneses não se beneficiaram suficientemente da expansão no exterior”, diz Hiroyuki Karasawa, gerente geral do negócio de consumo da Mitsubishi, que está planejando um grande impulso para ampliar o público para a propriedade intelectual japonesa. “Tanto o crescimento do mercado quanto retornos equitativos continuam sendo desafios-chave”.
Mangá e anime têm uma longa história —talvez até centenas de anos. Alguns sugerem que são descendentes de pergaminhos pictográficos que surgiram no século 12; outros os relacionam com charges políticas do final do século 19 ou com a propaganda de guerra dos anos 1930. Mas eles assumiram sua forma atual no período pós-guerra, que viu a invenção de personagens extremamente populares como Astro Boy, criado pelo animador Osamu Tezuka e que estreou em 1952 em uma série de mangá que gerou três séries de anime.
Os anos 1980 trouxeram “Dragon Ball” e “Akira”, contando respectivamente as histórias de um adolescente super-humano treinando em artes marciais e gangues de motoqueiros colidindo com forças psíquicas em uma Tóquio cyberpunk. Nos anos 1990 veio “Sailor Moon”, que narrava a história de uma colegial tentando salvar o universo. Os grandes sucessos dos anos 2000 foram “Naruto” e “One Piece”, que se tornou a série de mangá mais vendida de todos os tempos.
Antes rotulados como produto da cultura geek ou otaku, mangá e anime agora são populares em toda a sociedade japonesa. No metrô de Tóquio, é tão provável encontrar assalariados de terno escuro lendo “Jujutsu Kaisen”, a história de um estudante do ensino médio que se torna um feiticeiro, quanto o adolescente ao lado deles.
Mas foi preciso uma pandemia para liberar seu potencial global. A Netflix incluía títulos de anime há mais de uma década, mas à medida que o streaming explodiu, o gênero disparou em popularidade. Com séries que às vezes somam dezenas de episódios, ofereceu aos novos fãs a chance de mergulhar em mundos de fantasia por dias a fio.
“Enquanto os jogos e a indústria de jogos encontraram sucesso desde os anos 80, no mundo do anime e mangá é muito mais recente”, diz David Macdonald, um consultor de mídia independente. “Só começou realmente a dar certo nos últimos cinco ou 10 anos”.
“Não há dúvida de que as coisas mudaram drasticamente”, disse Takuto Yawata, executivo da Disney, em uma entrevista à publicação online Mantan Web no ano passado. “O anime japonês está agora em sua era de ouro.”
Uma força importante nessa expansão internacional é o Crunchyroll, um serviço de streaming que começou como um site pirata em São Francisco em 2006. Depois de ser adquirido pela Sony em 2021, agora é central para a estratégia de sua matriz. Ele licencia uma parte significativa do anime japonês recém-produzido e distribui mais de 2.000 títulos para mais de 200 países.
Um atrativo para os estúdios é a devoção apaixonada dos fãs de anime. De acordo com os números da empresa, metade dos mais de 15 milhões de assinantes do Crunchyroll assistem anime todos os dias; mais de 50% seguem grupos dedicados de mídia social, fóruns e canais do YouTube. O público tende a ser jovem: a maioria dos usuários do Crunchyroll é da Geração Z ou millennials mais jovens. Impressionantes 82% compram produtos relacionados.
“Fora do Japão e da China, nossa pesquisa mostra que existem 1,5 bilhão de pessoas que se consideram curiosas ou interessadas em anime”, diz Rahul Purini, presidente do Crunchyroll. “Quando os criadores japoneses veem isso, obviamente, sua posição de negociação se torna mais forte”.
Na última década, muitos dos maiores investidores de private equity —forma de investimento em que fundos compram participações em empresas privdadas— do mundo têm procurado oportunidades no Japão. Alguns consideraram desmembrar antigas empresas industriais; outros buscaram tesouros no mercado imobiliário. Mas Atsuhiko Sakamoto, chefe de private equity no Japão da gestora de ativos americana Blackstone, viu valor em outro lugar.
Viajando entre Osaka e Tóquio, Sakamoto observou um número crescente de pessoas lendo mangá —não na forma tradicional impressa, mas em iPads e outros dispositivos. “Cerca de três a quatro anos atrás, comecei a notar que as pessoas estão lendo quadrinhos digitais”, diz Sakamoto.
No ano passado, a Blackstone concordou em pagar US$ 1,7 bilhão (R$ 9,7 bilhões) por um negócio, a Infocom, que incluía uma editora e distribuidora de mangá extremamente popular, voltada principalmente para consumidoras com mais de 30 anos —uma das maiores transações de private equity no Japão em 2024.
Junto com sua base de usuários (definida por Takashi Kodama, seu novo diretor executivo, como mulheres que estão “totalmente insatisfeitas com sua história romântica na vida real”), a Blackstone também obteve acesso ao catálogo da empresa com 120 mil títulos, uma mina de ouro de propriedade intelectual valiosa.
“Quase 70, 80% ou mais do conteúdo de grande sucesso no Japão é baseado em mangá”, explica Kodama. “Diferente da Disney, onde tudo começa com o filme… aqui no Japão, tudo começa com o mangá”.
Rebatizada como Amutus, o plano da empresa é encomendar e adquirir novos títulos em gêneros como ficção científica e fantasia, e expandir internacionalmente por meio de traduções.
“90% do negócio hoje, nós distribuímos conteúdo de outras pessoas. Controlamos apenas 10%. Queremos dobrar isso ao longo dos próximos três anos”, diz Sakamoto. “Isso abrirá oportunidades para nos associarmos a estúdios de animação”.
A Amutus espera que sua loja digital seja fácil o suficiente de usar para que os fãs paguem em vez de arriscar baixar títulos pirateados, e pretende implementar algoritmos para personalizar ofertas de acordo com os gostos dos usuários. Enquanto isso, a Crunchyroll está adicionando mangás ao seu próprio aplicativo.
Para estúdios de anime, onde a produção e distribuição são mais complexas e caras, a estratégia é diferente. Para alcançar um público internacional, eles atualmente dependem de acordos com grandes distribuidores e plataformas de streaming, o que significa que cedem uma parte dos retornos. Mesmo empresas japonesas maiores como a Toho enfrentam o mesmo problema.
“Até agora, tínhamos apenas uma estratégia de vender a licença principal e era isso. Você receberia uma grande quantia de dinheiro no início, e seria só isso”, diz Ota, que também é chefe de anime da Toho. “Não tínhamos ideia de quanto anime e mercadorias estavam sendo vendidos em quais países e regiões. Mas, daqui para frente, nossa estratégia é fazer com que nossa equipe no exterior estabeleça acordos de licenciamento para cada região”.
Alguns proprietários de conteúdo estão explorando como fornecer para várias plataformas diferentes ao mesmo tempo, esperando aumentar sua visibilidade. “O conteúdo não se espalhará e só será visto por aqueles assinantes se for monopolizado por uma plataforma”, acrescenta Ota.
Construir plataformas japonesas nativas que tenham alcance internacional será desafiador, admite Kiuchi, o ministro. Em vez disso, ele e sua equipe destacam parcerias como as entre o canal Anime Times, uma colaboração entre vários estúdios japoneses, e a Amazon Prime.
“Se pudéssemos desenvolver nossa própria plataforma, seria bem-vindo, mas isso pode ser difícil”, diz Kiuchi. “Queremos usar e explorar a força das plataformas de streaming e então agregar valor por meio de merchandising e eventos”.
A esperança é que eventos para fãs, parques temáticos, jogos, publicidade e mercadorias possam ser explorados, tanto no exterior quanto incentivando fãs internacionais a visitar o Japão.
Purini, da Crunchyroll, ressalta que o merchandising —figuras de anime, fantasias e muito mais— é importante, mas complexo. Tradicionalmente, também é difícil de monetizar. “Você faz uma figura… e se ela for vendida a um consumidor por US$ 100 (R$ 568), o varejista está pagando apenas aproximadamente US$ 50 (R$ 284) no atacado por esse produto. O valor que retorna aos criadores nesse caso é 10% ou menos”.
Estúdios de anime estão explorando vendas diretas e criando seus próprios sites. A Toho também está planejando abrir cafés inspirados em personagens populares de anime e explorando a ideia de parques temáticos no exterior.
E há esperança de que estúdios ferozmente competitivos possam se tornar mais ágeis e colaborativos. Tradicionalmente, os títulos de anime eram financiados por “comitês de produção” compostos por investidores externos —um modelo que dificultava a negociação de acordos de direitos.
“Muito desse conteúdo foi feito através de comitês de produção quando fazia sentido compartilhar riscos”, diz Macdonald. “Mas isso tornou muito mais complicado descobrir como distribuir e comercializar.”
Em vez disso, os estúdios de anime estão cada vez mais dispostos a assumir mais riscos financeiros por conta própria, o que significa que precisam de menos parceiros por projeto, dizem os analistas.
Embora o anime receba a maior parte da atenção, está longe de ser a única propriedade intelectual valiosa que o Japão possui. A Toho pode possuir muitos animes, incluindo o mega-sucesso “My Hero Academia”, mas tem outra propriedade muito mais famosa: “Godzilla”.
Originalmente o protagonista de um filme live action de 1954, Godzilla foi reencarnado quase 40 vezes desde então —mais recentemente em “Godzilla Minus One” de 2023. O filme não apenas recebeu elogios da crítica e um Oscar de Efeitos Visuais (o primeiro do monstro), mas arrecadou US$ 115 milhões (R$ 653 milhões) nas bilheterias, muito mais do que os US$ 15 milhões (R$ 85 milhões) que custou para produzir.
Foi também o primeiro filme de Godzilla a ser distribuído internacionalmente pela Toho, o que significa que o estúdio reteve mais dos lucros. “O negócio é grande… mas quando se trata do negócio de IP e personagens, isso não foi feito de forma alguma, tanto no país quanto no exterior”, diz Ota. “Este é um IP importante, então queremos torná-lo muito maior”.
Os próximos passos para a indústria criativa japonesa são difíceis de prever. O governo espera que finalmente possa acertar sua estratégia, usando seus fundos para promover conteúdo e pedindo aos representantes comerciais que levem o anime tão a sério quanto carros e semicondutores.
Mas alguns analistas acham que essas iniciativas não abordam os problemas reais do setor, como a escassez de mão de obra e os baixos salários.
“Há talentos brilhantes surgindo… mas na base da indústria há muito esgotamento”, diz Rayna Denison, acadêmica da Universidade de Bristol e autora de “Studio Ghibli: An Industrial History”.
“Os criadores estão envelhecendo. Precisamos formar novos criadores aqui. Caso contrário, a China e outros começarão a formar os criadores”, admite Kiuchi.
Uma possível solução é a consolidação, pela qual empresas de entretenimento maiores simplificariam a densa rede de estúdios, produtores e distribuidores concorrentes. Isso permitiria uma produção mais eficiente e aumentaria o poder de negociação, dizem os analistas. E se a IA puder ser aproveitada para acelerar a produção e reduzir custos, os estúdios poderiam ser mais lucrativos.
“A consolidação está acontecendo, mas temos que ver como essa primeira onda se desenvolve. Ninguém sabe como isso vai se desenrolar”, diz Alt.
Se o Japão conseguir aumentar a influência econômica de sua indústria de entretenimento, então anime, mangá e outras fontes de propriedade intelectual valiosa poderiam ajudar a compensar os efeitos do declínio populacional do país e da base industrial vulnerável.
Se falhar, corre o risco de ficar para trás de outros rivais asiáticos, mais obviamente Coreia do Sul e China, cujos próprios filmes e séries produzidos localmente são cada vez mais populares no exterior.
“Seria sábio para as empresas japonesas pensarem em como responderão à Ásia produzindo mídia semelhante à forma como fizeram no Japão”, diz Denison. “Mais competição significa que é mais difícil obter lucro”.