Parte de nossa elite especializou-se na arte da simbiose com o Estado. Quando não está no poder, está ao lado dele. E quando perde uma eleição, ganha uma licitação. O país é um exemplo de como a herança de uma elite aristocrática pode atravessar gerações sem jamais sair de cena.
Diferentemente das elites europeias, que aprenderam a ceder espaço sob a pressão de revoluções e guilhotinas, a brasileira adaptou-se aos novos tempos refinando seu controle. Tornou-se banqueira, tecnocrata, lobista e acionista do próprio privilégio. Tornou-se tudo, mas raramente republicana. Mudou de nome sem mudar sua natureza.
É uma dinastia não coroada, pois o trono é o próprio Estado. Um Estado que, longe de ser um árbitro neutro, costuma atuar como um sócio discreto das castas do topo, oferecendo infraestrutura legal, institucional e legitimação ideológica para garantir sua longevidade.
O primeiro pilar que a sustenta é a riqueza herdada, que assegura a concentração de capital nas mãos de um número ínfimo de famílias, tornando o poder econômico menos resultado de acúmulo produtivo e mais expressão de um traço genético.
Trata-se de um capital que não precisa disputar o presente, porque já venceu no passado. E, ao ser transmitido aos herdeiros, torna-os vencedores por antecipação, financiados por um passado que continua lucrando no presente, sem que seja feito um esforço equivalente.
O segundo são os mecanismos institucionais de autopreservação. Um sistema composto por engrenagens jurídicas, tributárias e políticas, desenhadas para proteger esse patrimônio. Isso se materializa, por exemplo, em subsídios para os ricos e em um imposto sobre heranças muito abaixo da média da OCDE.
Por fim, há o encobrimento ideológico das regalias da nobreza… e, acreditem, talvez seja o mais insidioso dos pilares. Trata-se de um discurso meritocrático sedutor, capaz de transformar vantagens em façanhas pessoais, e trajetórias previsíveis em sinais de genialidade.
É uma narrativa bem organizada, que vende raras histórias de sucesso como se fossem acessíveis a todos, enquanto normaliza o favorecimento de quem nasceu no topo. No entanto, ao romantizar o sucesso dos bem-nascidos, ela oculta o roteiro hereditário que a perpetua.
Permite que herdeiros encenem o papel de “self-made men”, ocultando que suas vitórias começaram muito antes do ponto de partida dos demais. É um encobrimento ideológico muito eficiente, que ensina os de cima a parecer merecedores e os de baixo a acreditar nisso.
Romper esse ciclo exige mais do que indignação episódica. Exige uma revisão corajosa das engrenagens institucionais que naturalizam a reprodução de dinastias. Trata-se de reconhecer que a hereditariedade camuflada de competência não é uma distorção de nosso país, mas uma parte essencial de seu funcionamento.
Enquanto isso não ocorrer, o Brasil continuará sendo uma República de papel. Na prática, seguirá operando como um regime hereditário disfarçado, onde o berço pesa mais que o mérito. Onde poucos governam, muitos obedecem e poucos ousam chamar essa aristocracia pelo nome.
Este texto é uma continuação da série que tenho feito sobre as elites e uma homenagem à música “Beasts of No Nation”, de Fela Kuti.