Bill Drayton participou do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos na década de 1960. Inspirado por esse espírito de não violência, ele foi para a Índia prestes a completar 19 anos. Lá conheceu Vinoba Bhave, sucessor espiritual de Gandhi.
Experiências que levaram o americano a cunhar o termo empreendedor social e a fundar em 1981 a Ashoka, rede global que conta com 4.000 lideranças espalhadas por 90 países.
Quatro décadas depois, o pai do empreendedorismo social volta o seu olhar para uma nova desigualdade criada pelo progresso tecnológico, que exige uma nova mentalidade.
“Não precisamos ser todos empreendedores, mas ser agentes de transformação. Vivemos em um mundo onde o nível de mudança e o grau de interconexão têm aumentado exponencialmente. E não há como voltar atrás”, diz Drayton, à frente do movimento Todo Podemos ser Agentes de Mudança.
A visão de Drayton foi reconhecida globalmente quando Muhammad Yunus, integrante da comunidade de empreendedores sociais da Ashoka, recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 2006 por criar o banco dos pobres, modelo de microfinanciamento para combate à pobreza em Bangladesh.
A seguir, os principais trechos da entrevista feita dias depois de o CEO da Ashoka ter sido reconhecido com o prestigioso Global Treasure Award concedido pela Skoll Foundation na Universidade de Oxford.
O que significa receber esse prêmio nesta altura da sua trajetória como pai do empreendedorismo social e do movimento agentes de mudança? O prêmio é um reconhecimento do meu trabalho, do trabalho dos fellows Ashoka e de todos nós que estamos comprometidos em garantir que cada pessoa tenha uma vida melhor. Parte desse movimento de todos se tornarem agentes de mudança está atingindo o estágio inicial de decolagem. Desde os primeiros adeptos, foi um longo e lento processo. Eu senti em Oxford que as pessoas agora entendem a frase “o direito de contribuir”, um direito humano fundamental no sentido de que qualquer pessoa é capaz de criar uma mudança positiva. Todos precisam se tornar agentes de mudanças para prosperar e para tal precisam estar equipados com as habilidades necessárias. Dois ou três anos atrás, não entendiam isso. A palavra “changemaker” hoje está por toda parte, mas faz apenas 11 anos que entrou no dicionário.
Como vem se dando essa evolução desde que cunhou o termo empreendedor social? O movimento dos “changemakers” é resultado de outros movimentos como a luta pelos direitos civis e o feminista. Todos precisam ser agentes de mudança em um mundo hiperconectado e em constante transformação. E entramos naquele ponto de inflexão. Vivenciei em Oxford as pessoas se apropriando dessa linguagem. Achei muito encorajador que haja um nível muito sofisticado de entendimento do que é a nova desigualdade, resultado dos avanços tecnológicos, que se aprofunda muito rapidamente e precisa ser enfrentada antes de qualquer outra. Quando começamos, tínhamos o objetivo de mudança de estrutura, de entrar na cabeça de todos que é viável se importar com o outro e se organizar. Então, introduzimos a linguagem do empreendedorismo social, os fellows, a comunidade. E acho que tivemos sucesso.
Qual o papel do Brasil nesse cenário? Índia e Brasil são elogiados por terem o maior número de empreendedores sociais. A quantidade de fellows Ashoka na Índia é só um pouquinho maior que no Brasil, onde o número de fellows em relação à população é bem alto. Isso é notável e diz muito sobre o país e o futuro do Brasil. Outra característica sobre os brasileiros é que eles trabalham juntos muito bem.
O time da Ashoka Brasil e os jovens agentes de mudança brasileiros são os pioneiros globais no desenvolvimento dessa nova metodologia, que agora está se espalhando pelo mundo. Eu ficaria muito orgulhoso se fosse brasileiro. E considero isso uma enorme força para o futuro.
Ao fazermos essa transição para um mundo de mudanças exponenciais, 40% das pessoas ficaram para trás. E isso é muito cruel. Dói. É aquele sentimento: ‘Minha vida é um fracasso, meus filhos, meus vizinhos e meus amigos estão fracassando’
A Ashoka está desenvolvendo uma centena de “parceiros jiu-jitsu” em todo o mundo. São megaorganizações cruciais para que a sociedade compreenda e aja com rapidez diante dessa nova realidade.
Como empoderar jovens para serem agentes de mudança? Entre os fellows da Ashoka no mundo, 1.400 escolheram trabalhar com crianças como seu foco principal. Agora, 89% deles colocam crianças no comando. É uma redefinição do processo de crescimento e, portanto, da educação. Se conseguirmos que 20% ou 30% desta geração de jovens se tornem transformadores no século 21, nós vamos inverter o sistema. Para que isso aconteça, os pais têm que se preocupar se seu filho de 15 anos está praticando fazer mudanças. Para avançarmos, precisamos que cada pai entenda que estamos jogando um novo jogo.
Temos que perguntar ao professor se ele quer ser o bode expiatório pelo fracasso do sistema educacional ou se não seria uma estratégia melhor ajudar crianças a se tornarem poderosas. Cada pai, cada professor, cada grupo no Brasil e no mundo precisa entender que este é o novo jogo. É preciso liderar organizações diferentemente, transformando-as em equipes de equipes abertas e fluidas de agentes de transformação. Estamos ajudando uns aos outros a sermos os melhores agentes de mudança possíveis. Todos têm a capacidade.
A transformação é uma nova alfabetização, que requer o domínio de quatro habilidades: empatia cognitiva, a capacidade de compreender profundamente os outros e agir com compaixão para o bem de todos; trabalhar em equipe, exercer liderança compartilhada e ser protagonista.
Precisamos mudar fundamentalmente a nossa forma de agir. Se conseguirmos, viveremos em um mundo onde os problemas não superem mais as soluções. É um mundo de colaboração, no qual seremos guiados pela empatia para criar uma sociedade mais igualitária, onde todos têm poder e contribuem. Mas isso também pode ser assustador.
Por que assusta?
O mundo está mudando incrivelmente rápido. Se você não for um agente de mudança, ficará de fora. Esse é o pior cenário possível: não poder contribuir, ou pior, não ser bem-vindo. Isso me preocupa. Se não agirmos, corremos o risco de acabar em uma sociedade ainda mais dividida e cheia de raiva. Já é possível ver isso acontecendo em várias partes do planeta.
Você já ouviu os discursos do chanceler alemão, do Modi [primeiro-ministro da Índia]? O fato é que os demagogos ganharam um poder tremendo em todo o mundo nos últimos dez anos. A nova desigualdade está por trás disso. Ao fazermos essa transição para um mundo de mudanças exponenciais, 40% das pessoas ficaram para trás. E isso é muito cruel. Dói. É aquele sentimento: “Minha vida é um fracasso, meus filhos, meus vizinhos e meus amigos estão fracassando”. É com isso que estamos lidando na Alemanha, na Índia, nos Estados Unidos, no Brasil.
Precisamos ajudar todos a entenderem que ser agente de mudança é a única maneira de nos livrar dos demagogos, porque senão eles têm essa base de pessoas que se sentem fora do jogo. E elas precisam culpar o outro pelo próprio fracasso.
A geração Covid perdeu quatro anos de expectativa de vida nos condados de baixa transformação nos EUA. Essas pessoas olham para os 60%, eu e meus amigos, que estamos do outro lado da nova desigualdade. Tudo é excitante para nós. A demanda por qualquer um que tenha habilidades de agente de mudança excede a oferta. Nossos salários estão subindo. Já eles simplesmente não conseguem ir de West Virginia para Chicago porque não sabem como fazer parte do novo jogo. Isso leva à depressão, à fúria e à política de “nós contra eles” que se espalhou pelo mundo em apenas oito anos.
No entanto, nós sabemos como consertar isso. De volta aos fellows Ashoka, empreendedores sociais que colocam crianças no comando em milhões de escolas ao redor do mundo. Quando uma pessoa de 13 anos tem a experiência de idealizar uma estação de rádio virtual, um serviço de tutoria ou o que quer que seja, ela montou uma equipe e fez isso acontecer. Precisamos ajudar todos a entenderem que ser agente de mudança é a única maneira de nos livrar dos demagogos, porque senão eles têm essa base de pessoas que se sentem fora do jogo. E elas precisam culpar o outro pelo próprio fracasso.
O senhor participou das primeiras discussões em torno do Protocolo de Kyoto. Olhando para trás, qual a importância desse momento na definição do rumo da colaboração climática global? A velha maneira de fazer regulação era escrever uma regra e aplicava a lógica de comando e controle. Com essa nova metodologia, uma empresa ou qualquer pessoa sujeita à regulação pode propor uma alternativa, desde que alcance a mesma redução de emissões. Isso reduz o custo da conformidade. O mais importante é criar um grande incentivo para todo engenheiro em todos os lugares encontrar maneiras de tirar mais poluição a baixo custo e ganhar dinheiro quando o fazem. Isso é muito relevante para a amazônia. Essa lógica está apoiando muito trabalho ambiental. E Kyoto foi um momento em que o mundo disse, sim, isso realmente faz sentido e nós vamos fazer.
A saída do governo Trump do Acordo de Paris foi vista por muitos como um grande retrocesso para os esforços climáticos globais. Como o senhor reagiu a essa decisão e o que isso simboliza? Eu era o administrador assistente da Agência de Proteção Ambiental dos EUA sob Jimmy Carter. Ronald Reagan foi responsivo às mesmas forças que atuam na administração Trump, e ele queria destruir a agência. Estavam propondo 20% de cortes. Nós salvamos a EPA. Tínhamos ali 700 especialistas em meio ambiente. Fui à Casa Branca, falei com líderes políticos. Disse que aquilo ia custar caro. Eles viram que nós estávamos certos.
Nunca me ocorreu que eu estivesse em risco porque estávamos sob o Estado de Direito. Esta é a primeira vez na minha vida que eu não sinto isso, o que é extremamente perturbador. A nova administração Trump foi atrás de escritórios de advocacia, universidades, cientistas, filantropos. O ataque ao meio ambiente faz parte de um padrão maior. O grande risco diante da crise do clima é pensarmos pequeno e não agirmos. O meio ambiente está em perigo. Nós sabemos disso, você sabe disso. Temos que colocar todos a bordo nesse debate.
O senhor acredita que a agenda climática tem resiliência para suportar vácuos de liderança como a saída dos EUA sob Trump do Acordo de Paris? Não é só Trump. Vocês tiveram sua própria experiência no Brasil com Bolsonaro. E é a mesma dinâmica subjacente e sociológica da nova desigualdade.
Como garantir que a IA sirva à humanidade, em vez de aprofundar desigualdades? Quando surge um problema, uma nova oportunidade aparece. Uma leva de empreendedores sociais notou que estamos fazendo a transição de um mundo de repetição, competição e instituições estáticas para algo radicalmente diferente.
Um refugiado sírio que vive na Alemanha descobriu como entrar na web para colher evidências de violações de direitos humanos, amplamente aceitas pelos tribunais. Ele está treinando grupos de fellows em todo o mundo, já ajudou a Síria, o Iêmen e o Sudão. A IA pode ajudar, mas tem de ser policiada. Nós acabamos de anunciar um serviço bem sofisticado que qualquer fellow pode acessar gratuitamente para fazer pesquisa. Universidades em todo o mundo estão prontas para ajudá-los a descobrir como usar novas ferramentas de inteligência artificial.
Que conselho daria aos jovens que querem impulsionar mudanças, mas se sentem sobrecarregados diante dos desafios globais? Dê a si mesmo permissão para se dedicar a qualquer questão que lhe preocupe. A segunda dica é que muita gente vai dizer que você não pode fazer, mas entenda que, na verdade, isso significa apenas que eles não fizeram isso com as vidas deles, o que os deixa desconfortáveis. Seja gentil, mas os ignore.
Bill Drayton, 81
Nascido em Nova York em 1943, é mestre pelo Balliol College, na Universidade de Oxford, e doutor por Yale. Lecionou na Universidade de Stanford e na Escola de Governo em Harvard. Foi administrador assistente na Agência de Proteção Ambiental (EPA) no governo Jimmy Carter. Em 1981, fundou a Ashoka e preside outras três outras organizações: Youth Venture, Community Greens e Get America Working!.