O projeto de reforma do Código Civil permite que a herança a ser deixada por uma pessoa ainda viva possa ser objeto de negociação pelos herdeiros em quatro situações específicas. Em alguns casos, sem necessidade de anuência do dono do patrimônio —embora esse ponto possa ser alterado no Congresso sem prejudicar os principais objetivos da alteração, segundo um dos responsáveis pela proposta.
O texto elaborado por uma comissão de juristas e apresentado pelo senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) acrescenta seis novos parágrafos ao artigo 426 do Código Civil de 2002.
Atualmente, esse dispositivo diz apenas que a herança de pessoa viva não pode ser objeto de contrato. A reforma cria algumas exceções, ao dizer que “não são considerados contratos tendo por objeto herança de pessoa viva” alguns tipos de acordo.
Entre eles está o dispositivo que permite a renúncia à herança por meio de pacto antenupcial ou convivencial. Acordos desse tipo visam impedir, por exemplo, que o cônjuge de um segundo casamento, em regime de separação de bens, concorra com os filhos de um relacionamento anterior pelos bens acumulados antes dessa nova união.
Outro dispositivo permite acordos entre descendentes que tratem de partilhas de participações societárias.
Também serão consideradas válidas negociações em relação à colação de bens (obrigação de incluir doações recebidas anteriormente no inventário) e ao chamado excesso inoficioso —quando uma doação ultrapassa a metade do patrimônio do doador, afetando a parcela legítima dos demais herdeiros.
Relator da subcomissão de juristas responsável por esse trecho da proposta, o professor de Direito Mário Luiz Delgado afirma que o artigo 426 do Código Civil tem gerado controvérsias, diante de uma interpretação que ele classifica como hiperdimensionada da redação atual, e que a mudança busca esclarecer essas questões com base na experiência internacional.
Em relação aos dispositivos envolvendo o cônjuge, ele afirma que renúncia não é contrato, é ato unilateral de vontade, mas que há muitas ações na Justiça de viúvos/viúvas que buscam derrubar essa cláusula com base nesse artigo do código atual, algo que ele classifica como uma interpretação equivocada da lei.
Muitos herdeiros também usam o artigo para questionar acordos societários feitos antes da morte, mesmo quando há o aval do autor da herança. “Há quem interprete essa regra de forma até mais ampla do que as palavras que ela contém, a ponto de comprometer ou de pôr em risco algumas operações de planejamento sucessório patrimonial”, afirma o advogado.
A proposta diz que qualquer acordo sobre herança fora dessas exceções é nulo. A vedação a essas negociações é algo que tem origem no direito romano, a proibição aos “pacta corvina” ou pacto entre corvos (ave carniceira), por uma questão moral: se uma pessoa vende uma herança, aquele que comprou poderá desejar a morte do dono do patrimônio para ter acesso mais rápido aos recursos.
“Para evitar esse espírito de carniça, de desejar a morte do outro, eu tenho a regra geral dizendo que não posso vender a minha herança. Mas não posso proibir que a pessoa renuncie, por exemplo, a um direito sucessório. Isso não vai trazer nenhum prejuízo de ordem moral. Estou abrindo mão de uma coisa que será minha no futuro”, afirma Delgado.
Na prática, afirma, o que está sendo trazido para o Brasil é a chamada sucessão contratual, como é feito em Portugal, por exemplo. Atualmente, por aqui só é válida a herança na forma definida na lei ou testamentária. Ele lembra que o testamento é um ato revogável até o último dia de vida da pessoa, enquanto um contrato, de modo geral, é irrevogável.
Silvia Felipe Marzagão, especialista em direito de família e sucessões, afirma que a flexibilização em relação à renúncia entre herdeiros faz sentido, mas diz que o texto da reforma pode gerar judicialização em relação às negociações feitas sem a participação do autor da herança.
Ela cita o exemplo de um testamento que preveja a divisão das ações de uma empresa familiar de maneira diferente daquela acertada em um contrato entre dois irmãos quando o patriarca ainda estava vivo. Nesse caso, a lei diz que prevalece o testamento, o que não afasta a possibilidade de uma disputa judicial entre os herdeiros em relação ao contrato.
“As pessoas estão querendo ter mais liberdade para fazer planejamento sucessório. Só que precisa ter o cuidado para que esse ajuste entre os herdeiros também passe pela vontade do dono do patrimônio”, afirma.
“Se estiver convencionado entre os descendentes e ascendentes que aquele bem, por exemplo, não vai ser levado a colação, e todo mundo assinar junto, é uma coisa mais segura. O problema é que [o projeto] não exige que o dono do patrimônio participe do combinado.”
Delgado, o relator, diz que a proposta não ficaria prejudicada caso o Legislativo avalie acrescentar ao texto que o aval do proprietário dos bens é necessário em todas essas situações. Pela versão atual, o autor da herança pode ou não participar do acordo.
“Acho que não haverá nenhum prejuízo se você colocar que, em relação às doações [colação] e ao excesso inoficioso, o autor da herança também deve participar. Nas outras hipóteses, ele já participa obrigatoriamente, que é o caso da partilha de participações societárias no contrato social e na renúncia nos casos em que ela é recíproca”, afirma o advogado.
MUDANÇA NO ARTIGO 426
Como é:
Art. 426. Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva.
Como fica
Art. 426. Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva.
§ 1º Não são considerados contratos tendo por objeto herança de pessoa
viva, os negócios:
I – firmados, em conjunto, entre herdeiros necessários, descendentes, que disponham diretivas sobre colação de bens, excesso inoficioso, partilhas de participações societárias, mesmo estando ainda vivo o ascendente comum;
II – que permitam aos nubentes ou conviventes, por pacto antenupcial ou convivencial, renunciar à condição de herdeiro.
§ 2º Os nubentes podem, por meio de pacto antenupcial ou por escritura pública pós-nupcial, e os conviventes, por meio de escritura pública de união estável, renunciar reciprocamente à condição de herdeiro do outro cônjuge ou convivente.
§ 3º A renúncia pode ser condicionada, ainda, à sobrevivência ou não de parentes sucessíveis de qualquer classe, bem como de outras pessoas, nos termos do art. 1.829 deste Código, não sendo necessário que a condição seja recíproca.
§ 4º A renúncia não implica perda do direito real de habitação previsto no art. 1.831 deste Código, salvo expressa previsão dos cônjuges ou conviventes.
§ 5º São nulas quaisquer outras disposições contratuais sucessórias que não as previstas neste código, sejam unilaterais, bilaterais ou plurilaterais.
§ 6º A renúncia será ineficaz se, no momento da morte do cônjuge ou convivente, o falecido não deixar parentes sucessíveis, segundo a ordem de vocação hereditária.
Fonte: Projeto de Lei 4/2025