Quando um brasileiro me pergunta o que é a FCG (Fundação Calouste Gulbenkian), costumo dizer que reúne, numa só instituição, características da Capes, do Instituto Moreira Salles, da Pinacoteca, do Masp, da Sala São Paulo e da Fiocruz, aliadas a uma notável independência financeira. É verdade que seu jardim de 9 hectares é muito menor do que o do Instituto Inhotim, mas é igualmente obra de arte.
É a maior instituição de apoio à cultura, ciência e educação em Portugal, e uma das maiores da Europa, com produção artística e pesquisa científica também desenvolvidas internamente. O seu fundo patrimonial é de $ 3,6 bilhões de euros, superior ao PIB de Roraima, Amapá ou Acre. Ainda é recorrente considerar a FCG uma espécie de “Ministério informal da Cultura”, suprindo lacunas do Estado.
A atuação da Gulbenkian ultrapassa a lógica do mecenato. Tem o poder de transformar uma iniciativa em política, uma hipótese em urgência, um nome emergente em referência. É um poder raro, exercido diligentemente com discrição, mas com efeitos cumulativos profundos.
É na Gulbenkian que deve ser inaugurada, em 14 de novembro de 2025, a maior exposição já organizada em Portugal sobre o Brasil, possivelmente na Europa. A curadoria é assinada pelos professores universitários José Miguel Wisnik, Milena Britto e Guilherme Wisnik, com cenografia de Daniela Thomas. Em 2018, Wisnik já havia participado, em Lisboa, como consultor da exposição “A Língua Portuguesa em Nós”, ao lado de Isa Grinspum Ferraz e de Mirna Queiroz, responsável pela curadoria da programação cultural.
Britto integra o grupo de 82 autores de um livro sobre democracia brasileira, com apoio da Folha e lançamento previsto para o segundo semestre de 2025, organizado por Flavia Lima, Naief Haddad e por mim.
O efeito da exposição na Gulbenkian —chamada de Complexo Brasil— não deverá limitar-se às salas da Fundação. Ao conferir visibilidade e legitimidade institucional a um conjunto de obras, vozes e narrativas que confrontam a herança colonial, a violência simbólica e as continuidades estruturais entre Brasil e Portugal, a Gulbenkian está a validar uma nova etapa do debate luso-brasileiro.
O que ali se insinua deverá escapar à linguagem diplomática e à retórica protocolar. Deverá ser menos uma síntese do passado e mais uma abertura para o que quer que seja que venha pela frente. É um gesto tão arriscado quanto seguro do presidente da Gulbenkian, António Feijó, eleito em 2021.
A ligação da fundação ao Brasil sempre foi discreta. Sim, concede bolsas de estudo e apoia intercâmbios acadêmicos de pesquisadores de todas as nacionalidades, incluindo brasileiros. Sim, promove concertos de músicos brasileiros, exposições (ainda há quem tenha memória da “Seis Décadas de Arte Moderna Brasileira. Coleção Roberto Marinho”, de 1989) e ciclos de cinema. Sim, apoiou a divulgação em Portugal de autores como João Cabral de Melo Neto (em 2000) e Guimarães Rosa (em 2017). Mas, ainda assim, é uma ligação discreta. A realização da exposição Complexo Brasil sinaliza, por isso mesmo, um ponto de inflexão também nessa relação.
Felizmente, a curadoria foi entregue a mestres. Considerando o público português, a exposição terá de evitar tanto o gesto inflamatório, que apenas levaria parte dos visitantes a reagir com retraimento, quanto a cumplicidade com a diplomacia cultural, que muito esteriliza. O mérito da equipa curatorial brasileira estará em construir, justamente no território do pretérito colonizador, um percurso que confronte sem hostilizar, que revele sem didatismo, que proponha um método sem resvalar para o institucionalismo.
Também será um desafio fazer a curadoria para um público brasileiro. Portugal é o segundo país com mais cidadãos brasileiros fora do Brasil e um dos que mais recebem os seus turistas. É espectável que a exposição evite a redução da cultura brasileira à exaltação acrítica. Muitos irão visitá-la com reservas, atentos ao modo como são representados. Alguns verão ali o Brasil que conhecem. Outros, o Brasil que gostariam que fosse. Nenhum, espera-se, o Brasil conhecido pelos portugueses.