Recebi uma mensagem de alguém muito incomodado com uma fala minha no programa Lado B, do Brazil Journal, com Marcos Lisboa e Juliano Spyer, também colunistas da Folha. A pessoa dizia que eu estava oferecendo uma visão “romântica” da realidade ao sugerir que, na média, o evangélico pobre não vê o patrão como inimigo. Que, em vez disso, ele aspira a ocupar esse lugar. Para esse crítico, faltava ali uma leitura estrutural, um reconhecimento das violências cotidianas e das barreiras que impedem esse sonho de se concretizar.
Mas o ponto não era esse. Meu argumento não é que todos vão virar patrões, nem que a desigualdade brasileira pode ser superada pela mera força de vontade. O que defendi, e continuo acreditando, é que esse desejo de ocupar o lugar do patrão é, para muita gente, um gesto simbólico de dignidade. Ele expressa vontade de autonomia, reconhecimento e capacidade de gerar oportunidades para outros. É um sonho com sentido econômico e moral. E a política pública que quiser se conectar com essas pessoas precisa, no mínimo, considerar esse horizonte como legítimo.
Nesse sentido, como afirmou recentemente o economista Ricardo Paes de Barros, parece haver um consenso crescente entre decisores: o pobre quer trabalhar. Parece pouco, mas não é. Essa é uma mudança relevante no imaginário da política social. A tarefa agora é entender que esse desejo não é homogêneo. Ele se expressa por meio de aspirações diversas, que nem sempre cabem nas estruturas que o Estado costuma oferecer. Aceitar que pessoas em vulnerabilidade têm projetos, mesmo que desconectados das oportunidades locais, é o primeiro passo.
Assim, abordagens como o Graduation Approach têm atraído a atenção de formuladores de política ao redor do mundo. O modelo combina apoio financeiro inicial com acompanhamento, formação e conexão com mercados locais, gerando impactos duradouros em renda e autonomia. Mas o mais relevante é a premissa de que cada pessoa é protagonista do seu processo e que é preciso investir tempo e inteligência institucional para compreender seus contextos, capacidades e desejos.
No Brasil, alguns programas recentes apontam nessa direção. O Nossa Gente Paraná promove acompanhamento intersetorial e busca ligar proteção social à inserção produtiva. Na Paraíba, o Incluir Paraíba foca a agricultura familiar e o fomento a atividades sustentáveis. O programa federal Acredita no Primeiro Passo aposta em microcrédito, qualificação e conexão com vagas formais.
Mais recentemente, o SuperAção SP propõe planos personalizados para famílias em situação de pobreza, combinando renda, acesso a serviços e acompanhamento. São propostas distintas, mas que compartilham uma intuição comum: é preciso partir dos sonhos e das realidades de quem se quer incluir. Ainda é cedo para saber se esses programas têm alcançado seus objetivos. Avaliações externas serão essenciais para medir seus efeitos na vida dos beneficiários.
Quando falo que o “sonho de ser patrão” é legítimo, quero dizer que não se faz política ignorando as aspirações dos mais vulneráveis. Parte desses sonhos não vai se realizar, como muitos dos nossos também não se realizam. Mas esse é o ponto de partida. A tarefa da política é construir caminhos plausíveis, sem deslegitimar o que as pessoas querem.
Talvez o trabalho mais difícil da política social seja esse: escutar sem prometer o que não se pode cumprir e, ainda assim, não trair o que se ouviu. A dignidade não está apenas na realização dos sonhos, mas no direito de continuar tendo um.