Médico formado pela USP, Matheus Reis, 29, começou a ajudar colegas de faculdade com o reconhecimento da cidadania italiana após sua própria experiência com o processo. A atividade virou negócio e, hoje, ele comanda a io.gringo, maior plataforma digital no atendimento de brasileiros que buscam esse direito.
Reis afirma que as mudanças aprovadas pelo parlamento italiano, por iniciativa do atual governo de extrema direita, impedem cerca de 90% dos descendentes no Brasil de conseguir o passaporte roxinho pelo critério do vínculo sanguíneo. Segundo ele, são, aproximadamente, 27 milhões de descendentes que, pelas novas regras, tiveram seu direito cancelado. Ele diz que, pela via judicial, é possível reivindicar a cidadania pela via judicial, mas o processo ficará muito mais caro e difícil.
Quem levantou o número de descendentes de italianos no Brasil?
A própria embaixada [da Itália] e o próprio consulado fizeram um estudo no qual eles estipularam o número de 30 milhões.
O que acontece com essas pessoas agora?
A gente teve mudanças drásticas com o decreto. Pessoas que eram descendentes de italianos acima de avô [como bisnetos, tataranetos], basicamente, perderam o direito [à cidadania]. Estamos falando de algo em torno de 90% dos 30 milhões.
E quem entrou com o processo antes da mudança?
Quem não entrou com o processo até o dia 27 de março de 2025, perdeu o direito. Quem entrou até a data do decreto [27 de março], manteve.
O que o decreto fez?
Antes, era possível reconhecer a cidadania indo diretamente à comune [subdivisão administrativa na Itália], ao consulado ou à Justiça. O decreto falou assim: acabou o consulado, acabou o comune e, a partir de agora, eu vou começar a pensar num órgão que vai ser instituído dentro de Roma para conduzir os processos de cidadania. E deu um prazo de até dois anos para começar a desenhar esse órgão. Até lá, não tem como pedir a cidadania.
Havia dez anos de fila nos consulados. Imagine. Só vai conseguir manter o seu direito quem já tinha o agendamento feito [para apresentar os documentos], ou seja, só quem estava na porta do gol. Todos os outros que estavam na fila perderam o seu direito. Aquelas pessoas que estavam em preparação de documentação também perderam. Isso dita muito como vai se estruturar agora a dinâmica da cidadania.
Essas pessoas podem recorrer à Justiça italiana?
O movimento [de mudança] começou pelo Executivo, passou pelo Legislativo. Acabou de terminar dentro do Parlamento, mas agora é preciso um parecer do Judiciário. Algum processo vai chegar nas cortes superiores e, dentro desse processo, a Corte Superior vai ter que se manifestar. Todas essas pessoas que já tinham direito conquistado e que foram lesadas vão entrar com ações judiciais. Vai abarrotar. A mesma coisa que eles fizeram com o consulado vai acontecer no Judiciário agora.
Então, quem vai pacificar o tema é o Supremo italiano?
O Supremo italiano é dividido em corte de cassação e corte constitucional. Vai ser a corte constitucional, pois é um tema de inconstitucionalidade.
Por quê? Quais são os pontos de inconstitucionalidade?
Vou citar quatro. A primeira coisa é o formato. Como que você discute um tema de cidadania italiana por meio de um decreto? Eu instituo um decreto no momento que eu tenho uma emergência: covid, invasão, bombardeio. Não faço um decreto para um tema de cidadania. O Executivo justificou o decreto dizendo que a população de estrangeiros do exterior, dos italianos do exterior, era uma ameaça à Itália.
Um segundo aspecto é o da retroatividade. A cidadania italiana é adquirida no momento do nascimento, com base em dois critérios: o pai reconhecer e a pessoa ter sangue italiano. Se a pessoa já adquiriu um direito, não é possível retirá-lo. As pessoas já nasceram e elas adquiriram a cidadania perante a lei. Não é que a pessoa não tinha cidadania, ela sempre teve. Ela só não fez o rito formal.
E os outros dois pontos?
A condição de não ter dupla cidadania como um dos critérios para passar a cidadania. Ou seja, falaram que um avô ou pai [nascidos no Brasil] não podem ter tido outra cidadania [a brasileira, no caso] porque isso teria prejudicado o vínculo deles com a Itália e, por isso, eles não seriam capazes de me passar a cidadania italiana.
Mas os termos dos quais a Itália é signatária —o da própria União Europeia e o Manifesto de Direitos Humanos—, reconhecem a dupla cidadania. O quarto aspecto de inconstitucionalidade é assim: como que eu tiro o direito de cidadania de uma pessoa, sendo que o sistema para reconhecer esse direito nem existe. Não tem como você fazer nada: “espera aí que eu vou abrir esse órgão e, quando eu abrir, te aviso”.
O decreto, com essas regras, não visava justamente colocar a questão nas mãos do Supremo?
Pessoalmente, eu confio muito no Supremo da Itália. Eles já se posicionaram em outras decisões pró-constitucionalidade da cidadania italiana e também sendo contrários à retroatividade. [Mas] Do ponto de vista democrático e do ponto de vista de segurança jurídica e política, a Itália não é um exemplo.
Nunca tive nenhum caso indeferido para a cidadania italiana. Mas agora eu vou para um cenário de não-pacificação. O risco de indeferimento aumenta substancialmente.
O segundo ponto é o risco de honorários de sucumbência. E o terceiro ponto é que existe a chance de subir para a segunda instância e, com isso, ter de pagar de novo as taxas do tribunal, que não são baratas.
A gente está falando de quanto, exatamente?
No cenário anterior, num processo de cinco pessoas, R$ 10 mil por pessoa (R$ 50 mil), mais os gastos do tribunal: 600 euros por pessoa (R$ 3.900). E agora existe o risco de ir para a segunda instância. A gente está falando de mais ou menos R$ 5 mil por pessoa. Realmente, não acredito que as pessoas vão deixar de procurar o direito, só que isso vai ficar muito mais caro e difícil.
Quais foram os mercados mais impactados?
Argentina, Brasil e EUA. São as populações que têm maior descendência italiana e maior vínculo com a Itália. Perderam o serviço à cidadania de forma administrativa, mas ainda conseguem solicitar esse direito, que não é garantido.
O que acontece com seu negócio agora? Você poderia migrar para outras nacionalidades?
Poderia migrar para as outras nacionalidades. A cidadania espanhola é interessante porque ela tem uma lei que se chama Lei da Memória, que inclusive termina agora em outubro, que foi uma exceção para protocolar o processo da cidadania. Na Alemanha há uma estrutura bem montada para os descendentes. Mas acho que faz mais sentido diversificar meu negócio, montando uma plataforma voltada à comunidade italiana com outros serviços.
Quantos clientes possui e quantos vai perder?
Eu tenho quase oito mil clientes e acredito que em torno de 10% a 15% das pessoas devem solicitar rescisão. Porém, acho que esse número vai ser suprimido pelas pessoas que vão querer protocolar [ações judiciais]. Não vejo que vai ser um negócio que vai ter uma possibilidade de crescimento absurda, mas que essa dinâmica vai ser importante para a manutenção [da io.gringo].
Com Stéfanie Rigamonti