“Lá no centro, estão refazendo obra feita para mostrar na COP30, mas a nossa hora aqui nunca chega.” É assim que Luciano Pereira, 55, morador de Tapanã, bairro de Belém no entorno do igarapé Mata Fome, resume a visão popular sobre o mutirão de empreendimentos que tomou conta da capital do Pará a título de legado da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, que acontece na cidade em novembro.
Situado na bacia hidrográfica de mesmo nome, ao norte da região metropolitana, é periferia no sentido exato da palavra. O rio que corre entre as casas é um esgoto a céu aberto. O odor é sentido ao longo de quadras. Naquela região, o que chega da COP30 é terra retirada de outras obras da cidade. Segundo os moradores, as pilhas são vendidas ou doadas, a depender do dia, como material para aterro.
“O Mata Fome é a prioridade sempre esquecida, mas uma obra lá seria o legítimo legado da COP30”, diz Amanda Quaresma, consultora ambiental que integra o Comitê Gestor do Sistema Estadual sobre Mudanças Climáticas.
Essa frustração tem contexto. Belém está entre as piores cidades do país em coleta e tratamento de esgoto. O governo do estado do Pará afirma em seus anúncios que mais de 500 mil pessoas serão beneficiadas por obras de saneamento, especialmente na periferia, mas no que se refere particularmente à coleta de esgoto, no entanto, o número cai para 40 mil pessoas, o equivalente a 3% da população.
A presidente do Instituto Trata Brasil, Luana Pretto, explica que o termo saneamento básico inclui quatro vertentes: acesso a água tratada, coleta e tratamento de esgoto, coleta do lixo e sua destinação adequada e o manejo da água da chuva, dividido em macrodrenagem, que atua no fluxo dos veios d’água, e a microdrenagem, que abarca as tubulações.
O grande número do governo do Pará contabiliza obras de drenagem pluvial e urbanização das ruas no entorno, incluindo paisagismo, quadras de esporte, praças, playground e academia ao ar livre, em 13 canais das bacias dos rios Tucunduba, Murutucu, Una e Tamandaré.
Na essência, são grandes intervenções para deter enchentes e organizar o trânsito nessas áreas —o que não é pouco, afirmam especialistas, e empolga os moradores. Belém se urbanizou aterrando trechos de várzeas e igarapés, e a população sofre com alagamentos recorrentes.
O investimento soma R$ 1 bilhão. O BNDES financia 12 canais, e Itaipu Binacional financia um.
No recorte das obras de esgoto, solicitado pela Folha, o cenário é outro. O próprio governo informou que, especificamente no caso da coleta, são cerca de 10 mil ligações à rede, bancadas pela gestão atual. Para especialistas em saneamento básico, é uma contribuição muito pequena.
A confirmação disso na concessão parcial dos serviços da Cosanpa (Companhia de Saneamento do Pará). A modelagem do projeto que delegou coleta e tratamento de esgoto à iniciativa privada não mostra que o estado do Pará tenha realizado intervenções de grande porte nesse sistema.
As metas da concessão preveem que a parcela da população atendida por esgoto deve ir dos atuais 15,32% para 90% até 2033. Será preciso incorporar 1 milhão de pessoas à rede de coleta e tratamento de esgoto —um esforço anual que representa o triplo alcançado para a COP30.
O secretário de Infraestrutura e Logística do estado do Pará, Adler Silveira, afirma que as obras de saneamento serão feitas em etapas. Para COP30, como primeira fase, a proposta foi atuar para desafogar os canais maiores, uma vez que estão interligados com os menores, e afirma que a seleção dos locais seguiu critérios técnicos.
“Considerou densidade populacional e o potencial de integração entre os bairros, uma vez que a proposta é melhorar não apenas o saneamento, mas trazer uma reorganização para o escoamento do trânsito, porque conta com novas vias.”
Outro local tomado pela decepção é o miolo de barracos junto ao igarapé São Joaquim. No emaranhado de vielas fétidas, as casas que misturam alvenaria e madeira foram erguidas sobre uma água lamacenta, feita da mistura de restos de várzeas. A mancha de água submersa recebe, minuto a minuto, fezes, lixo e água da lavagem de louças, roupas e corpos
Um dos riachos contaminados passa bem ao lado das casas da família de Nilza Nordeste de Souza, 50. São dois barracos para 10 pessoas. No mês passado, oito, incluindo quatro crianças e uma grávida, ficaram cobertos de bolhas com pus. No posto de saúde, o diagnóstico foi escabiose, mais conhecida como sarna, que prolifera em ambientes insalubres.
“A gente tinha esperança de que essa situação ia começar a mudar na COP, mas nada vai ser feito aqui”, diz Maria da Gloria Almeida, agente de saúde e antiga líder comunitária na área.
Especialistas locais não discordam do senso popular. “Os maiores projetos da COP30 são reformas de canais degradados por falta de manutenção, que beneficiam muito mais áreas que já contam com infraestrutura”, afirma arquiteto e urbanista Pamplona Ximenes Ponte, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFPA (Universidade Federal do Pará).
Ele é coordenador do Núcleo Belém do Observatório das Metrópoles e membro do Ondas, o Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento.
Para exemplificar o favoritismo, Ximenes lembra que um dos poucos projetos que inclui tratamento do esgoto é o do canal da Nova Doca.
“Ali já tem infraestrutura. No entorno estão bairros como Umarizal, que tem o metro quadrado mais caro de Belém, e não está longe o Porto Futuro, onde vão ficar os hotéis para receber visitantes da COP.”
O local escolhido para processar parte do tratamento do esgoto da Nova Doca gera polêmica. O prédio da elevatória (tipo de atividade que separa fezes e urina) ficará colado à Vila da Barca, uma comunidade pobre.
“É isso que sobrou para nós nessa COP30: querem que a gente fique com o cocô dos ricos”, diz Inês Medeiros, professora e líder comunitária.
O secretário de Infraestrutura e Logística do Pará, Adler Silveira diz que o governo também atendeu diferentes segmentos da população. “Para todos esses canais, havia uma demanda por reestruturação do saneamento”, explica.
Sobre a obra na Vila da Barca, ele afirma que as famílias locais não serão prejudicadas.
A diretora socioambiental do BNDES, Tereza Campello, reforça que os 12 canais financiados pelo banco em Belém representam um dos maiores investimentos em infraestrutura da história e vão mudar a realidade dos moradores dessas áreas.
“Como diz o nome, são obras de macrodrenagem e urbanização, não de esgoto ou fornecimento de água, e são vitais para que as pessoas não fiquem mais debaixo d’água”, diz ela.
Sobre a Nova Doca, Itaipu afirmou em nota, participa da obra como apoiadora financeira, mediante solicitação formal do governo federal.
“A Itaipu atua no acompanhamento da aplicação dos recursos, com foco na transparência e na boa governança, sem possuir gerência sobre os procedimentos públicos”, destacou no texto.
FIM DE ENCHENTES E ASFALTO NOVO EMPOLGAM MORADORES
A Folha visitou as obras dos 13 canais em Belém e conversou com moradores. O canal da Avenida Cipriano Santos, por exemplo, inaugurado em 18 de maio, foi aprovado pelos moradores.
Lino Ângelo Silva dos Santos, 78, esperou a inauguração para pintar a sua casa. De pincel na mão, três dias depois, já estava retocando a entrada do seu sobrado de alvenaria, com dois andares, bem na frente da via restaurada.
A esposa, Rosa Ozires Silva dos Santos, 72, estava animada com o resultado. “Sempre sonhei em morar num lugar onde tivesse tudo, e, agora, sim, eu moro numa avenida de verdade”, afirmou.
O asfalto lisinho, as passarelas de metal com tinta nova e as calçadas alinhadas também deixam o pessoal aliviado no trecho já concluído do canal da Gentil Bittencourt. “A rua era buraco, só e a beirada do canal estava escangalhada. Em vista do que era, é um muito avanço”, diz Oseias Chaves, 52.
Nos demais canais em reforma, Caraparú e no conjunto de canais Vileta, União, Timbó e Leal Martins, as obras seguem em ritmo acelerado.
No centro, a área da Nova Doca já foi aberta, e os operários fazem acabamentos finais. Não longe dali, no canal da avenida Almirante Tamandaré, que também vai virar parque linear, ainda há tapumes. Não é possível avaliar o andamento da rua.
No grupo de quatro canais que estão sendo abertos há contratempos.
Benguí e Marambaia, na região do estádio da cidade, mais conhecido como Mangueirão, estão bem atrasados. O secretário Silveira diz que os trabalhos foram prejudicados pela chuvas e vão ganhar ritmo para a entrega até o evento
O trecho mais afastado do conjunto que abarca os canais Mártir e Murutucu, na estrada para o Ceasa, também está lento. As obras no Mártir na parte urbana, junto a residências, sofreu contratempos.
A área na lateral onde a rua é preparada para pavimentação não suporta o peso das próprias máquinas. Uma casa começou a tombar e parte do canal já construído também.
“Na hora, deu até uma sacudida e inclinou. Tem rachadura lá em cima. Mas os engenheiros vieram, já filmaram. Dizem que vão arrumar e está seguro. Não preciso sair”, diz Maria do Socorro Franco, 65.