A desigualdade no Brasil se manifesta de múltiplas formas. Um aspecto que se destaca nas preocupações atuais da população é o acesso à segurança pública. Isso não significa que pessoas brancas e de alta renda estejam seguras, como indicam os recentes aumentos de crimes no rico bairro de Pinheiros, em São Paulo. Ainda assim, os indicadores de criminalidade e a sensação de insegurança são muito piores em regiões periféricas.
O contexto é importante para analisar a segurança pública, mas percebe-se que há problemas graves em diferentes estados brasileiros, geridos por partidos políticos de distintas posições ideológicas. A pouca efetividade na ação policial é um desses desafios. Surgem aqui perguntas básicas e necessárias: quem é e como atua a polícia? Nesse ponto específico, há poucas informações disponíveis.
Secretarias de Segurança Pública de vários estados disponibilizam dados sobre criminalidade em suas áreas de atuação, mas quase não há informações sobre quantos são os policiais nessas áreas e qual é o seu perfil. Essas informações são importantes por vários motivos. Por exemplo, as pesquisas sobre administração pública no mundo indicam que o compartilhamento de características entre a polícia e a população são importantes para a efetividade da sua ação. Nos Estados Unidos já se observou que policiais mulheres deixam outras mulheres mais à vontade para relatar casos de violência sexual e são mais efetivas na investigação desses casos. Uma série de estudos em várias áreas indicam que há resultados melhores na atuação de agentes públicos quando estes compartilham características com a população.
As pesquisas acadêmicas dão o nome de burocracia representativa a esse fenômeno. O pressuposto deste conceito é que, se um servidor público como um policial compartilha características de identidade com uma parte da população, ele compreende melhor os seus problemas e a sua maneira de pensar, sendo capaz de atuar de forma mais efetiva. Um policial negro de origem periférica entenderia melhor o comportamento da juventude negra periférica, por exemplo, do que um policial branco com origem social distinta.
No Brasil ainda há poucos estudos nesse sentido, justamente pelo acesso limitado a dados sobre as características dos funcionários públicos. Não sabemos quantos policiais em um estado como São Paulo são homens, quantas são mulheres, quantos são negros e quantos são brancos, e nem quantos indivíduos entre esses diferentes grupos ocupam posições de liderança. Assim, não é possível realizar estudos que identifiquem se alguma das características está associada a melhores resultados. Além disso, por mais que estudos sobre burocracia representativa usualmente foquem em dimensões de gênero e raça, no Brasil há outros fatores que podem criar identidade entre policiais e a população, como a religião, região de origem e outros.
É possível e necessário ter acesso a esses dados, sem a identificação individual dos policiais, respeitando a Lei Geral de Proteção de Dados e preservando a sua segurança. Esse avanço é importante para conhecermos melhor a polícia que temos e para que possamos, enquanto sociedade, decidir que polícia é preciso ter.
O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço “Políticas e Justiça” da Folha de S. Paulo sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Marcelo Marchesini foi “Police & Thieves”, de Lee Perry e Junior Murvin, interpretada por The Clash.