“Uma vez que você tenha experimentado voar, você andará pela terra com seus olhos voltados para céu, pois lá você esteve e para lá você desejará voltar”
A frase atribuída a Leonardo da Vinci, que historiadores juram que ele nunca produziu, embora tenha projetado vários artefatos que, esperava, permitiriam ao homem voar com os pássaros, reproduz perfeitamente o que sente quem já se pegou no ar, vento na cara e só uma vela sobre a cabeça. E, dos meios que o ser humano desenvolveu para chegar aonde os pássaros se esbaldam, provavelmente um dos mais belos e intensos é o voo com parapente, ou paraglider, como preferem os americanos.
O parapente é uma modalidade de voo livre na qual a vela, semelhante a um paraquedas, sustenta o piloto no ar o tempo que o vento e as térmicas (correntes de ar quente que sobem do solo aquecido e que levam o voador a muitos metros de altura) permitirem.
Embora esteja enquadrado como esporte radical, o voo de parapente costuma ser suave, ao contrário da descida de paraquedas, que é vertiginosa. Mas eis que um dia uns montanhistas resolveram unir o útil ao agradável e economizar energia descendo de montanhas cada vez mais altas usando justamente o parapente. Considerando que, para a maioria das pessoas, a descida depois de uma subida cansativa se revelava mais perigosa que a própria ascensão, por que não juntar os dois esportes em um só?
O primeiro montanhista que registrou uma descida de alta montanha —e mais do que isso, do próprio cume do Everest— foi o escalador francês Jean-Marc Boivin, que saltou em setembro de 1988 dos 8.849 metros de altitude direto ao acampamento 2 da montanha, num voo de quase 3.000 metros realizado em 11 minutos. Mas o feito pioneiro não agradou às autoridades nepalenses, que só legalizaram a prática em 2022, dando autorização ao sul-africano Pierre Carter para o primeiro salto oficial. Este não chegou ao cume, decolando de 8.000 metros, mas seu feito se destaca por ele ter chegado mais longe, até o vilarejo de Gorakshep, a 5.164 metros, em 20 minutos.
Se o Everest é a estrela habitual da festa, em montanhas de todo o mundo o esporte, conhecido como hike & fly, ou trilhar e voar, se difundiu, incluiu corridas rústicas e é cada vez mais presente. Seu evento maior, o Red Bull X-Alps, será realizado entre os dias 15 e 27 deste mês, em um percurso que cruza os Alpes e une corrida, escalada e voo livre ao longo de 1.283 quilômetros pelas montanhas de Áustria, França, Alemanha, Itália e Suíça. Nesta edição, entre os 35 atletas classificados, um brasileiro disputará as provas: Gabriel Jansen.
Com meses de treinos exaustivos no Brasil e, há três meses, na Europa, ele se preparou para enfrentar trechos de até 150 quilômetros por dia, com média de 4 mil metros de subida vertical e 100 quilômetros a pé. “É um misto de ansiedade e realização”, contou ele em meio aos últimos preparativos para a jornada. “Foram meses intensos, me preparando com tudo o que eu tinha, então é claro que bate aquele frio na barriga, mas também uma confiança de quem fez o que precisava ser feito”, resumiu.
Aqui no Brasil, a comunidade crescente seguramente vai torcer pelo colega do outro lado do Atlântico. E um dos brasileiros que vão estar de olho nas provas será Leandro “Montoya” Estevam, primeiro e único montanhista a saltar do Pico da Neblina, ponto mais alto do Brasil, com 2.995 metros de altitude, e em um ambiente que desafia até quem só pretende subir e descer em cima dos dois pés, pelo clima úmido e o solo lamacento da floresta amazônica, que dificulta ao máximo a caminhada, misturado aos ventos e à neblina do acesso ao cume, que dão nome à montanha.
Outro que estará de olho nos Alpes certamente será Ricardo Rui, o brasileiro que saltou do pico mais alto até hoje, o vulcão Ojos del Salado (6.893 metros de altitude), na Colômbia, e único a registrar voo desde o cume dessa montanha. Bem que os guias locais alertaram que de lá não se decolava, pelo rigoroso regime de ventos. Mas ele foi lá, saltou e teve o prazer de sobrevoar a cratera gelada. Porque é assim que faz quem sabe fazer.
Infelizmente, um dos pioneiros dessa modalidade esportiva, Rodrigo Raineri, não poderá assistir ao desempenho de seu compatriota. Ele morreu em julho do ano passado ao decolar de uma encosta do K2, no Paquistão. Mas a ele, com certeza, todo paramontanhista faz homenagens. Este texto, por exemplo, é dedicado a ele.