Nova York deve bastante aos holandeses. Foram eles, e não os britânicos, que fundaram a cidade 401 anos atrás. Foram os holandeses que assentaram as bases para que fosse uma mistura de culturas —uma das características de que os nova-iorquinos mais se orgulham.
Esse passado holandês é pouco lembrado, porém. Às vezes se menciona que a cidade foi criada com o nome Nova Amsterdã em 1624. Também se diz que os britânicos a tomaram em 1664 e a rebatizaram como Nova York. Mas esses fatos aparecem mais como anedotas sem importância.
O cenário começou a mudar quando o jornalista e historiador Russell Shorto publicou em 2004 o seu best-seller “A Ilha no Centro do Mundo” (ed. Objetiva, 429 págs., disponível em sebos). O livro é hoje um clássico e a razão pela qual mais pesquisadores têm se debruçado sobre esse tema.
“Até outro dia, as pessoas não pensavam que o período holandês tinha qualquer influência na história da cidade”, Shorto diz à reportagem. Os documentos que ele estudou, no entanto, provam o oposto: as quatro décadas de domínio holandês moldaram os quatro séculos seguintes ali.
A história da cidade começa em 1624. Foi criada como um entreposto comercial no sul da ilha de Manhattan. A localização era ideal, entre outras razões, porque facilitava a negociação de valiosas peles de castor com os indígenas que viviam naquela região.
Os holandeses, acostumados à vida marítima, perceberam que a geografia era especial por ali. A baía de Nova York, por exemplo, é ideal para as navegações. O rio Hudson, que passa pela cidade, permitiria mais tarde a exploração do interior desse continente.
A Holanda era um dos lugares mais multiculturais da Europa, diferente de alguns dos vizinhos, devastados por guerras religiosas. A colonização de Nova Amsterdã refletiu isso: foi feita por gente de diferentes classes sociais, culturas, línguas e religiões.
Hoje essa imagem pode parecer banal. Mas era algo pioneiro. Assim como os holandeses foram pioneiros no comércio. “Eram capitalistas antes mesmo de a palavra existir”, Shorto afirma. O multiculturalismo e o capitalismo foram, diz, “a receita de Nova York”.
Essa foi em alguma medida a receita também dos Estados Unidos. O livro de Shorto sugere que, com o desenrolar dos séculos, Nova York veio a determinar alguns dos que seriam mais tarde os valores fundamentais do país.
Sobraram poucos resquícios materiais dessa história, que ficou no século 17. Um dos elementos mais visíveis são os nomes. Wall Street (rua do muro) se refere a uma fortificação holandesa. Brooklyn e Harlem se referem às cidades holandesas Breukelen e Haarlem, respectivamente.
Novos trabalhos, que vieram na esteira do livro de Shorto, têm mostrado o impacto que os holandeses exerceram também na exploração de populações indígenas e na escravidão —uma outra faceta de Nova York.
Mesmo a ideia de multiculturalismo tem que ser entendida dentro dos contornos daquele contexto, Shorto afirma. Os holandeses não eram defensores da diversidade cultural como entendemos hoje. Era algo mais parecido com a tolerância da diferença.
Ainda assim, era uma abordagem diferente da dos puritanos britânicos—que Shorto descreve como “extremistas religiosos”. Foram eles que tomariam a Nova Amsterdã dos holandeses.
A conquista foi o resultado de vários fatores, entre eles os fracassos dos holandeses em governar a colônia a distância. A transformação de Nova Amsterdã em Nova York é o assunto do mais recente livro de Shorto, “Taking Manhattan”, que saiu em março (W. W. Norton, R$ 184,82, 408 págs.).
Os britânicos entendiam já naquele momento o quão especial a cidade era. Tanto que negociaram a rendição holandesa, evitando combates desnecessários que poderiam acabar destruindo a valiosa infraestrutura.
Os conquistadores deram aos habitantes de Nova Amsterdã o direito de permanecer ali e seguir suas vidas como se nada tivesse ocorrido. Isso porque, Shorto diz, queriam garantir a continuidade de uma cidade que dava certo.
Foi a solução para que as pessoas e negócios ficassem por ali. Eram, afinal, o “ingrediente secreto”, afirma. Tinham mais importância do que a terra ou a localização, para garantir que Nova York seria, nos séculos seguintes, uma das grandes cidades do mundo.