Lembro do meu primeiro dia na USP quando, conversando com um colega, falei que morava em Osasco. “Nossa, do outro lado do rio”, ele se surpreendeu, sem se dar conta que a Cidade Universitária também ficava do lado de lá do Pinheiros – e estava inclusive mais perto de Osasco do que de Moema, onde ele vivia. Só mais tarde entendi que o Pinheiros, mais que um elemento físico, era um dos limites simbólicos de duas cidades: a privilegiada, entre rios, e a outra, das pontes pra lá.
As diferenças entre essas cidades são gritantes quando analisamos dados e mapas. No centro expandido, elevada concentração de empregos, equipamentos culturais, parques, ruas arborizadas, calçadas largas. Das pontes pra lá, uma cidade que, grosso modo, cresce informal, “sem planejamento”.
Isso porque o planejamento urbano de São Paulo é capturado por uma pequena elite predatória, para quem a cidade parece um espaço a ser explorado financeiramente e não compartilhado. Buscando contribuir para a série do Michael França sobre as elites, neste artigo trato de como elas prejudicam a cidade, que deveria ser local de troca, mas se transformou em espaço de segregação.
Principalmente ao restringir o acesso e a oferta de moradia nas áreas centrais, o planejamento joga a população mais pobre para as periferias. Enquanto imóveis ociosos no centro, muitos deles espólios da elite, poderiam ser destinados à moradia, reduzindo o espraiamento urbano, este segue motivado por novos conjuntos habitacionais nas periferias, os quais contam com incentivos públicos que beneficiam a própria elite.
A preferência dessa elite é pelos espaços de consumo em detrimento dos públicos. Até nas recentes parcerias privadas para administração de parques, o que vemos é a tendência à segregação, com a criação de catracas e espaços para os VIPs.
O orçamento é capturado para pavimentação de vias e subsídios aos automóveis, uma vez que a elite não usa transporte público, mesmo com estações de metrô na porta de casa – ao contrário de quem vive na periferia e passa horas no trânsito para chegar ao trabalho. Ela evita o transporte público não por conta da baixa oferta e qualidade, portanto, mas porque não aceita dividir o meio de transporte com a própria empregada doméstica. Pouco importa se carros poluem mais.
Em parte por causa da sensação de insegurança, mas também pelo anseio de não se misturar, essa elite se esconde cada vez mais atrás de muros altos, em condomínios isolados da cidade que trazem para dentro de si espaços outrora públicos como quadras e playgrounds, reduzindo com isso o convívio com a vizinhança e a diversidade. E pouco importa se muros matam a vida na rua.
A discussão sobre planejamento urbano, portanto, não pode se dar a partir da falsa dicotomia Estado x Mercado, tão em voga em tempos de polarização. Afinal, supostos equívocos do planejamento podem refletir preferências da elite, que é Estado e Mercado ao mesmo tempo.
Um desafio, assim, é reunir habilidade e coragem para enfrentar essa lógica e adotar medidas que derrubem muros, desincentivem carros no centro expandido e não apenas melhorem a vida das pontes pra lá, mas principalmente permitam que muito mais pessoas vivam e convivam das pontes pra cá.
O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço “Políticas e Justiça” da Folha de S. Paulo sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Vitor Meira França foi “Da ponte pra cá”, de Racionais MC’s.