Parece uma pergunta ridícula e com uma resposta óbvia, mas, antes de enfrentar esse assunto, relato uma experiência vivenciada enquanto estou morando nos EUA. Eu e minha esposa, Isabella, pretendíamos matricular nossos filhos em uma escola pública específica de um bairro chamado Brighton, na cidade de Boston, em Massachusetts. Conhecíamos a qualidade do ensino e da rede de apoio desta unidade educacional e, justamente por isso, estávamos destinados a nos estabelecer nas redondezas desse centro escolar, conforme havíamos obtido orientação a respeito.
Nos Estados Unidos, como regra, as crianças estudam nas escolas públicas do bairro. É um requisito e, por causa disso, nos apressamos em firmar um contrato de aluguel. Entendia que se tratava de uma lógica organizacional de distribuição populacional e, claro, alocação estrutural dos serviços públicos, no caso a rede de ensino, segundo uma dinâmica de eficiência e aproveitamento do fluxo social, do transporte até a ocupação racional do território urbano.
Por trás disso, enquanto mantinha minha rotina de leitura, deparei-me com uma lógica tributária que, de fato, faz muito sentido e impacta diretamente a decisão de contribuir mais, ou não, com os cofres públicos. Em muitos distritos, a comunidade local tem a prerrogativa de deliberar sobre o aumento da alíquota do próprio imposto sobre propriedade (property tax), por meio de votações comunitárias conhecidas como overrides ou special tax levies. A destinação desse acréscimo fiscal é voltada à melhoria do sistema público de ensino local. Em outras palavras, disponho-me, como cidadão, a contribuir mais, desde que confiante no propósito e na boa aplicação dos recursos públicos.
Diante desse cenário, a pergunta inicial ganha nova dimensão. Nesse caso, a melhoria do ensino não somente qualifica e prepara as crianças como seres humanos, inclusive para o mercado de trabalho futuro; e vai mais além. Esse modelo gera um ciclo virtuoso de desenvolvimento local, inclusive por elevar o valor de mercado dos imóveis na região, pois famílias buscam se estabelecer em áreas com boas escolas públicas. A valorização dos imóveis repercute, então, em nova elevação da base de cálculo do property tax, gerando uma arrecadação adicional natural e sustentável.
Esse caso concreto nos faz refletir sobre a base teórica do sistema tributário. Para superar a crise de legitimidade tributária, bem como a elevada litigiosidade, o déficit de confiança e de cooperação, com a consequente perda de credibilidade democrática dos tributos, é preciso construir paradigmas relacionais que não estejam sustentados unicamente no poder-dever de impor e cobrar impostos, mas na qualidade da relação entre Estado e cidadão-contribuinte. A relação de confiança e de pertencimento são fundamentais em qualquer vínculo e, por isso mesmo, o centro de gravidade do sistema tributário deve deslocar-se da relação jurídico-tributária como normativo-coercitiva para uma teoria relacional e intersubjetiva.
Quando há propósito claro, benefício mútuo e confiança institucional, a tributação não é uma imposição, mas um ato de pertencimento. O que essa experiência ensina à teoria jurídica é que o tributo não é, ou ao menos não deveria ser, uma imposição desconectada do reconhecimento social. Quando o contribuinte percebe o destino claro de sua contribuição e identifica um benefício coletivo e individual em sua participação fiscal, a propensão ao cumprimento voluntário aumenta. Mais do que isso: o tributo passa a ser visto como um instrumento de pertencimento, de coautoria na construção de uma coletividade mais justa e próspera.
No campo da teoria relacional do Direito Tributário, objeto de pesquisas que venho desenvolvendo, esse exemplo é paradigmático. A legitimidade tributária se assenta não apenas na autoridade normativa do Estado, mas na qualidade da relação entre Fisco e contribuinte, com base em relações fundadas em confiança, reconhecimento, participação e reciprocidade, que tendem a gerar maior adesão espontânea à “obrigação” tributária.
Ao contrário, relações baseadas em suspeita, opacidade e autoritarismo promovem resistência, sonegação e litigiosidade. Tom R. Tyler demonstrou empiricamente em artigo científico que a obediência ao Direito decorre, sobretudo, da percepção de que as autoridades são justas e respeitosas em seus procedimentos, e não do mero temor à sanção (TYLER, 1990).
A experiência narrada com o financiamento escolar local traduz essa teoria em prática: a participação ativa da comunidade na decisão tributária constrói a legitimidade do tributo e sua função social. No Brasil, onde a crise de legitimidade tributária ano a ano se acentua, esse exemplo é particularmente instrutivo. A resistência à carga tributária, a percepção de ineficiência estatal e a desconfiança generalizada no destino dos recursos são sintomas de uma relação fiscal deteriorada e, portanto, promover instrumentos de escuta, participação e retorno institucional é essencial para estabelecer confiança e construir a legitimidade do sistema.
A legitimidade tributária não se constrói apenas com normas, mas com relações, que envolvem confiança mútua, transparência, escuta ativa e propósito compartilhado. A crise tributária brasileira não é apenas fiscal —é relacional. Superá-la exige mais do que reformas técnicas ou ajustes legislativos: requer repensar o lugar do contribuinte na arquitetura do Estado, como alguém que participa, decide e cofinancia o bem comum. Se o tributo continuar a ser percebido como “expropriação” distante e desprovida de sentido coletivo, continuará a ser combatido, judicializado ou sonegado, mas, por outro lado, se enxergado como um elo de conexão, integração e identificação, poderá, enfim, subsidiar políticas públicas cada vez melhores.