O ressentimento tem encontrado terras férteis em ambientes marcados por mobilidade social limitada, disputas por reconhecimento e pela progressiva assimilação, pela sociedade, das diferenças intra e entre grupos. Ele não é um desconforto passageiro, mas uma força persistente, corrosiva e politicamente maleável.
A insatisfação de quem tem pouco é compreensível. Crescer num país que promete meritocracia, mas entrega vantagens hereditárias, alimenta a sensação de que o jogo está marcado desde o nascimento. E ele está.
Mas tal frustração não é exclusividade dos mais pobres. Ela também habita os coraçõezinhos inseguros da classe média tradicional, que vê seu pequeno status se dissolver diante de um mundo que muda, se diversifica e está esgarçando parte da velha hierarquia social. A presença crescente de novos grupos sociais em espaços de maior prestígio, por exemplo, tem desestabilizado quem, por muito tempo, se acostumou a olhar o mundo de cima, mesmo que de um degrau muito modesto.
Por falar em degraus, há também o ressentimento dos coroados pelo nascimento. Sim, ironicamente, até os herdeiros do topo o sentem. O escrutínio público crescente sobre seus privilégios e o questionamento da aura de autoridade que sempre lhes foi conferida ameaçam o conforto de uma elite acostumada a ser reverenciada.
Para muitos, é a primeira vez que precisam lidar com críticas abertas, perda da obediência automática e o incômodo de ver suas certezas sendo revistas por uma parte da sociedade que já não os enxerga como intocáveis.
Esse incômodo, antes restrito a pequenos círculos, ganhou múltiplas expressões. A lista de fatores que o alimentam é extensa, fazendo do ressentimento uma mercadoria política de alto valor. Ele não tem cor. Não tem classe social. Não respeita fronteiras ideológicas. É uma lente, ainda que embaçada, pela qual muitos interpretam o mundo e, quando explorado por oportunistas, converte-se em capital eleitoral, lealdade ideológica e engajamento febril nas redes sociais.
E o que fazemos com isso? Ignorá-lo é perigoso. Alimentá-lo, me parece irresponsável. Mas escutá-lo e redirecioná-lo pode ser um gesto de inteligência política. Porque, no fundo, todo ressentimento carrega, em certo sentido, uma frustração mal elaborada, um desejo interrompido, uma demanda por dignidade.
O desafio é transformar essa força difusa em um impulso por mudanças que realmente impactem a vida do cidadão. Em vez de deixar que o ressentimento alimente o tribalismo e as guerras culturais que empobrecem o debate público, é preciso canalizá-lo para políticas que enfrentem, por exemplo, a frustração com a mobilidade social bloqueada, apesar dos esforços.
Parte desse processo passa por reconstruir espaços de escuta mútua, pois eles representam um antídoto necessário contra o narcisismo das diferenças, que tantas vezes transforma divergências legítimas em muros intransponíveis.
Além disso, será preciso lideranças capazes de traduzir indignação em políticas que sejam assimiladas pela população. Políticas que garantam que cada cidadão, independentemente de qual grupo social integre, tenha possibilidades reais de melhorar de vida e sentir que faz parte de um país que reconhece seu esforço.
O texto é uma homenagem à música “Tribalistas”, de Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte.