Augusto César Barreto Rocha, 53, chega atrasado para o almoço na sede do Cieam (Centro da Indústria do Estado do Amazonas). Cumprimenta os jornalistas convidados pela instituição para conhecer algumas fábricas da Zona Franca de Manaus e pede licença para se sentar. Enquanto saboreia uma iguaria local, pirarucu ao molho de camarão, ouve com atenção os questionamentos da reportagem sobre a dificuldade logística em Manaus.
“O problema de Manaus não é logística”, diz Rocha. “Caso contrário, o açúcar do doce que a senhora está comendo não chegaria até aqui”, responde calmamente um dos maiores especialistas em logística da região Norte do país, professor da Ufam (Universidade Federal do Amazonas), doutor em engenharia de transportes pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e especialista em gestão da inovação pela Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha. “O problema de Manaus é a infraestrutura.”
O assunto é a principal preocupação da Zona Franca de Manaus, região onde cerca de 600 empresas contam com incentivos fiscais para manter unidades industriais, que geram 130 mil empregos diretos e 430 mil indiretos. No ano passado, o polo faturou R$ 204 bilhões, alta de 18% em relação a 2023, com produtos variados, de motos a medicamentos, passando por celulares e micro-ondas. A previsão deste ano é chegar aos R$ 236 bilhões, segundo a Suframa (Superintendência da Zona Franca de Manaus).
Na reforma tributária, Manaus conseguiu preservar vantagens fiscais até 2073, oferecendo produtos que chegam ao consumidor custando 30% menos, em média, em relação a similares estrangeiros, conforme a Suframa. Esse benefício muitas vezes não chega, no entanto, para quem mora ao lado da Zona Franca.
Escoar a produção de Manaus para as demais regiões do país não é tarefa simples, pois rodovias —modal responsável por cerca de 60% do transporte de carga no Brasil— são escassas. Os voos são caros e os navios precisam lidar com a época de seca —as dos dois últimos anos foram recordes, o que exigiu investimentos adicionais de R$ 2,9 bilhões por parte da indústria, para que as embarcações não ficassem encalhadas no rio Negro. Fora isso, o transporte fluvial é demorado: são cinco dias para chegar em Belém.
A dificuldade de acesso gera impactos na distribuição —parte dos produtos saem de lá para a sede das empresas, no Centro-Sul, para depois serem distribuídos às varejistas— e torna muito mais restrita a competição no comércio local.
“Um celular aqui custa o dobro do que é cobrado em outros lugares”, diz a estudante de farmácia Jéssica Gabrielle Queiróz de Almeida, 18, que mora na comunidade flutuante Catalão, no rio Negro, em Manaus. Ela trabalha na loja de artesanatos da família, que funciona na casa onde moram.
“Tem uma varejista aqui, a Bemol, que triplica o preço das coisas”, diz ela, que faz compras em grandes marketplaces, dando o endereço de parentes em Manaus. Mas precisa ter paciência: o tempo médio para entrega é de 11 a 14 dias. “Compra internacional demora uns 20 dias”, afirma Gabrielle, que consegue receber mais depressa livros da Amazon, que chegam em menos de 7 dias.
A varejista citada pela estudante é líder em vendas na região Norte. Segundo dados do último balanço publicado pela Bemol, de 2023, a empresa registrou receita líquida de R$ 3,4 bilhões, com lucro de R$ 493 milhões, uma alta de 12% sobre o ano anterior. De acordo com a plataforma Klooks, que compila dados públicos de empresas, a margem de lucro da companhia foi de 14,5%, enquanto a média do varejo é de 2%.
A reportagem pode conferir in loco: em uma das lojas da rede em Manaus, um celular Samsung Galaxy A25 256 GB, com 8 GB de memória RAM, é oferecido a R$ 2.368. Em São Paulo, o preço gira em torno de R$ 1.390. Já o Mercado Livre entrega o produto em Manaus por R$ 1.289 —um preço 84% menor ao da Bemol.
Fundada em 1942 pela família Benchimol, a empresa também é dona de uma financeira e oferece como diferencial as entregas por barco, na maioria das 62 cidades do estado do Amazonas, assim como em comunidades ribeirinhas. Além de 34 lojas de varejo de móveis e eletro na região Norte, o grupo possui quatro mercados, 19 loterias, cinco centros de distribuição e 42 farmácias.
Na capital amazonense, é possível verificar diferenças expressivas também no preço de medicamentos: o Orlistate 120 mg, produzido pela EMS em Manaus e usado no tratamento de obesidade, é vendido por R$ 116,90 pela Bemol Farma (versão de 42 comprimidos). Na Drogasil, sai por R$ 89,99. Questionada pela reportagem sobre as diferenças de preços, a Bemol não respondeu até o fechamento desta edição.
“Aqui tudo é mais caro”, diz Demézio furtado Filho, 67, taxista há 35 anos em Manaus. Quando quer comprar um eletrônico mais em conta, pede a parentes e amigos que trabalham na Zona Franca e conseguem adquirir produtos com desconto. Na Samsung, o programa de desconto para funcionários e trabalhadores terceirizados permite a compra de três itens por ano, no valor total de R$ 50 mil. A Samsung, ao lado de Honda, Yamaha e LG, está entre as maiores empregadoras da Zona Franca.
Na Yamaha, o desconto para funcionários é de 30% sobre o preço das motos. Para driblar as dificuldades de infraestrutura e escoar a produção para o Sudeste e Sul do Brasil, os seus maiores mercados, a Yamaha criou em 2017 uma empresa logística —a Yamalog— que presta serviços a outras fabricantes da região. É a única empresa de logística controlada pelo grupo japonês no mundo, que conta com uma frota terceirizada para fazer o transporte, a distribuição e a armazenagem de produtos. Em Manaus, a Yamaha também produz motores de popa.
Na região Norte, o preço médio de um micro-ondas em abril foi de R$ 725 —pouco mais de 4% superior ao preço médio do produto no resto do país (R$ 694), de acordo com a empresa de pesquisas GfK, especializada no consumo de eletrônicos e linha branca. A Electrolux, que lidera a venda de micro-ondas no Brasil, produz o eletrodoméstico exclusivamente na Zona Franca, onde também fabrica aparelhos de ar-condicionado. Os varejistas da região Norte têm acesso aos produtos a partir do CD (centro de distribuição) da companhia em Manaus.
De origem sueca, a Electrolux tem no Brasil o seu segundo maior mercado mundial (só atrás dos Estados Unidos) e vem procurando expandir o uso da cabotagem para distribuir a sua produção, com o objetivo de diminuir a emissão de poluentes. “A carga vai de balsa até Belém e de lá segue de navio pela costa. Podemos deixar uma parte no nosso CD na Paraíba e outra parte seguir até Santos. De lá, vai por transporte rodoviário até São Carlos, onde temos outro CD”, diz Hamzah Nasser, diretor da fábrica da Electrolux em Manaus.
Já a multinacional americana Coca-Cola organiza a sua produção no Brasil de maneira peculiar. Em Manaus, só fabrica concentrados para seus refrigerantes, por meio da Recofarma. Da capital amazonense, saem kits de concentrados usados pelas engarrafadoras do sistema em todo o país e na América Latina, o que faz da empresa a maior exportadora do polo industrial, enviando produtos também para Colômbia, Venezuela, Bolívia, Paraguai e Uruguai. As vendas da Recofarma superam R$ 1 bilhão ao ano.
Mas na região Norte, segundo a consultoria Kantar, o preço médio do litro de refrigerante no varejo é de R$ 4,60 —o segundo mais caro do país, só atrás da região Nordeste (R$ 4,63). O preço do litro no Norte do país é 15% superior, por exemplo, ao do refrigerante no interior paulista (R$ 3,91). No sistema Coca-Cola, a engarrafadora que atende toda a região Norte, Nordeste e parte do Centro-Oeste do país é a Solar, de Fortaleza (CE), que também tem uma das suas unidades industriais na Zona Franca.
Nos casos da francesa Bic, fabricante de canetas, isqueiros e barbeadores, e da brasileira Novamed (do grupo EMS, de medicamentos), os produtos não saem de Manaus prontos para exposição nas prateleiras. Eles são embalados no interior paulista, a fim de diminuir os custos de frete.
Voos diários saem de Manaus com destino a Campinas carregando medicamentos da EMS, a granel. Segundo a empresa, o produto embalado ocuparia pelo menos quatro vezes mais espaço do que viajando como comprimido ou cápsula. Fora isso, existe o prazo de validade dos produtos: viagens terrestres ou de navio poderiam subtrair três meses da vida útil dos medicamentos. De Campinas, a carga segue até a vizinha Hortolândia, a 23 km de distância, onde o grupo farmacêutico tem sua sede e outra fábrica.
“Eu moro aqui há 32 anos. Quando o pessoal começa a falar sobre a BR-319 eu já nem escuto mais. Sei que não vai sair tão cedo”, diz o francês Hamon Jean Marc, diretor industrial da Bic, que tem em Manaus a sua única fábrica no Brasil. O carro-chefe deixou de ser as canetas desde o início deste século. Hoje o que mais vende são isqueiros e barbeadores.
A rodovia que poderia resolver boa parte dos problemas de infraestrutura logística de Manaus foi tema de um bate-boca recente entre a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva (Rede-AC), e o deputado Omar Aziz (PSD-AM), durante audiência na Comissão de Infraestrutura do Senado, no final de maio, em Brasília. O deputado cobrou o asfaltamento da BR-319, que vai de Porto Velho (RO) a Manaus (AM) —única ligação terrestre dos dois estados com o Centro-Sul do Brasil, capaz de impulsionar o desenvolvimento econômico da região.
Com 880 km de extensão, a BR-319 tem apenas os trechos próximos a Porto Velho e a Manaus trafegáveis. O chamado “trecho do meio”, com mais de 400 quilômetros, não é asfaltado e não pode ser percorrido em pelo menos metade do ano, devido à temporada de chuvas.
Mas ambientalistas defendem que a obra pode levar ao aumento desenfreado do desmatamento na Amazônia, se não forem tomadas medidas de mitigação e governança, uma vez que a rodovia, construída nos anos 1970 pela ditadura militar, cruza uma das regiões mais preservadas do bioma.
A repórter viajou a convite do Cieam (Centro da Indústria do Estado do Amazonas)