No clima ameno dos montes, o Sol esquenta os paralelepípedos de Ouro Preto e projeta sobre a cidade, como dizia Manuel Bandeira, duas sombras descomunais —Aleijadinho e Tiradentes. Pois é em seu caráter monumental, feito de dor e misericórdia, anseio de liberdade e consciência cívica, que a antiga Vila Rica insiste em afirmar seu encanto.
Não é acaso que Ouro Preto tenha sido eleito o melhor destino histórico no Brasil, segundo novo levantamento do Datafolha para o especial Viaja São Paulo. A cidade foi lembrada, espontaneamente, por 22% dos paulistanos, num empate técnico com o próprio estado de Minas Gerais, com 21%.
A estatística é mais uma confirmação dos vaticínios de profetas como o itabirano Carlos Drummond de Andrade. Além dos versos de “A Morte das Casas de Ouro Preto”, reconheceu num poema dos anos 1980 que “em Ouro Preto, redolente, vaga um remoto estar presente”, recomendando a “entrega mansa de turista que de ser turista se esqueça”.
É sensação natural para quem chega pela rua Padre Rolim, beirando a Igreja de Nossa Senhora das Mercês, e se depara com uma ampla vista da cidade, entre o branco das paredes, as telhas de barro e o verde da Serra do Espinhaço.
Mais alguns passos e a praça Tiradentes se abre em três tempos. Ao centro, a estátua de Joaquim José da Silva Xavier —no mesmo ponto onde, em 1792, expuseram a cabeça do mártir—, dá as costas ao Palácio dos Governadores, encarando a antiga Casa de Câmara e Cadeia de Vila Rica, que serviu de prisão aos conjurados antes de sediar, desde 1944, o Museu da Inconfidência.
Este último —fechado para reformas desde março— é parada obrigatória para ver exemplares históricos como um pedaço da forca do Tiradentes, ferramentas de exploração do ouro pelos escravizados, ou observar o salão com os restos mortais dos inconfidentes e o pátio interno e suas celas.
Da praça, abrem-se as íngremes veias da cidade, desafio para as panturrilhas. A recomendação é se lançar por essa multidão de casinhas e placas, onde a casa do poeta Tomás Antônio Gonzaga pode estar ao lado de um café ou de uma farmácia, dividindo a rua com pousadas, repúblicas universitárias, o Grande Hotel, de Oscar Niemeyer, restaurantes e resquícios de outros tempos.
É numa dessas que se pode trombar com o discreto Chafariz do Alto da Cruz, obra de Manoel Francisco Lisboa, pai de Antônio Francisco, o Aleijadinho, coroado por um busto de mulher, considerada uma das primeiras obras do gênio, então aos 19 anos.
Será mais fácil, porém, ir direto à sua obra-prima, a Igreja de São Francisco de Assis, em frente à tradicional feira de artesanato no Largo do Coimbra. No exterior, a construção impressiona pelo rebuscado relevo da portada, representando as armas franciscanas e o medalhão de Nossa Senhora, encimado pela cena em que o frade recebe os estigmas do Cristo.
Já no interior, o teto pintado por Mestre Ataíde, o altar e as cenas dramáticas dos púlpitos, esculpidas em pedra-sabão, deixam tamanha impressão que é difícil sair de lá sem clamar por piedade, ainda que involuntariamente. É essa, afinal, a premissa do barroco, estilo por meio do qual o fervor religioso se confunde com o maravilhamento plástico.
Para seguir no rastro de Antônio Francisco, cuja biografia trágica tempera o drama de sua obra, é indispensável seguir o circuito sacro, passando pelo lavatório da Igreja do Carmo e por peças reunidas no Santuário de Nossa Senhora da Conceição.
Neste último, o artista foi sepultado, em 1814, décadas após enfrentar a doença degenerativa que atrofiou seus membros, provocando as chagas que o batizaram na posteridade.
Por sorte, em Ouro Preto, a história não foi enterrada. Redescoberto durante a visita dos modernistas às cidades históricas do estado, há cem anos, o local foi tombado em 1938. É por essas e outras que, hoje, a mansidão turística dos queijos, da cachaça, do doce de leite e da pimenta que esquenta o feijão tropeiro não subtrai a agonia e a glória gravadas em pedra.