O governo brasileiro está estudando a compra de usinas nucleares flutuantes para uso na Amazônia, uma solução oferecida pela estatal russa Rosatom no escopo da aproximação entre os dois países no espinhoso campo da energia atômica.
A Rosatom, por sua vez, está de olho em aprofundar a parceria iniciada em março para a exploração conjunta de urânio na mina de Catetité, na Bahia. “Temos muito interesse em ampliar nossa cooperação”, disse à Folha o diretor da empresa para a América Latina, Ivan Dibov.
A empresa russa, ator global tão central no mercado que continua tendo 20% de suas receitas externas de US$ 100 bilhões em 2024 vindas de países adversários no contexto da Guerra da Ucrânia, como os Estados Unidos, é pioneira na tecnologia de pequenos reatores.
Conhecidos pela sigla SMR (reator modular pequeno, em inglês), eles produzem de 10% a 50% do que as centrais maiores produzem, com a vantagem de ocupar espaços reduzidos. Em 2020, a Rússia lançou a única usina flutuante hoje em operação no mundo.
Montada sobre a barcaça Acadêmico Lomonosov, ela provocou enorme celeuma com ambientalistas, que a apelidaram de “Tchernóbil flutuante”, em referência ao desastre nuclear soviético de 1986.
Nada até aqui aconteceu, e ela está substituindo uma antiga central com reatores obsoletos, além de uma poluente usina termoelétrica no Ártico russo. O Greenpeace segue denunciando a prática como perigosa.
O governo brasileiro gostou da ideia, em princípio. “Os pequenos reatores, inclusive os modelos flutuantes, podem oferecer soluções seguras e estáveis para regiões de difícil acesso, como a Amazônia. Temos mantido um diálogo técnico produtivo com a Rosatom”, disse à reportagem o ministro Alexandre Silveira (Minas e Energia).
Por evidente, é uma empreitada complexa. Dibov diz que ainda é preciso acertar uma regulação com a AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica). A usina flutuante russa demorou dez anos para entrar em operação, com licença especial do órgão da ONU.
A Rosatom projeta que a Amazônia poderia receber até 2035 12 reatores, gerando 0,6 GW, e prevê demanda para mais 0,5 GW de 10 reatores em navios na costa nordestina, outra região com déficit. Isso equivale a metade da capacidade instalada de matriz nuclear no país hoje.
Custos ainda não são debatidos. “Demora agora dois, três anos para construir”, disse Dibov, para quem a conta vai depender do número de usinas a serem contratadas. A primeira usina russa começou seu orçamento em US$ 340 milhões em 2010 e acabou em estimados US$ 870 bilhões, valores corrigidos.
Silveira também demonstra interesse nos pequenos reatores para outros fins, como a alimentação de datacenters e outras aplicações que demandam energia intensiva.
O caso amazônico é particular porque, apesar de abrigar grandes hidrelétricas, a região está largamente desconectada do país, dependendo muito de poluidoras termelétricas a diesel e até, em Roraima, vinda da Venezuela.
É algo paradoxal, dada a matriz elétrica do país, que é 85% renovável —a energia nuclear de Angra 1 e 2 responde por 1,2% do consumo apenas.
As usinas brasileiras dependem da Rosatom, no país desde 2015. Houve contratos menores e outros de isótopos apara medicina nuclear, mas em 2023 os russos ganharam duas licitações para fornecer por cinco anos o urânio enriquecido para Angra, negócio estimado no mercado em US$ 140 milhões.
O Brasil, apesar de tecnicamente dominar todo o ciclo do enriquecimento do urânio e ter a sétima maior reserva mundial do metal, hoje envia o primeiro produto processado, o chamado “yellowcake”, para fora, onde é convertido no gás hexafluoreto de urânia e aí enriquecido para se tornar combustível nuclear.
É toda essa tecnologia que está no coração da atual guerra entre Israel e Irã, pois as ultracentrífugas que separam isótopos do urânio podem tanto fazer a matéria-prima usada em usinas, com 4,25% de enriquecimento no contrato com os russos, como os mais de 80% necessários para a bomba atômica.
A política tem peso. Antes do acordo com a Rosatom, o Brasil dependia do Canadá, país membro da aliança militar Otan, para o serviço. A aproximação com os russos, que data do governo Jair Bolsonaro (PL), solidificou-se sob Lula (PT), um entusiasta do grupo Brics —que inclui Brasília e Moscou.
A Rosatom, diz Dibov, nada tem a ver com um outro tema correlato, que é o fornecimento de combustível qualificado para o submarino nuclear brasileiro, uma novela de longo prazo.
O executivo minimiza questões políticas. “Temos o melhor produto e o melhor preço”, afirma, sem revelar valores. No mercado, estima-se que o urânio enriquecido russo custa metade do que o da concorrência.
Antes da viagem, em março, a estatal abocanhou um contrato de US$ 40 milhões numa licitação que lhe abre outras possibilidades nos trópicos. Pelo acordo com as INB (Indústrias Nucleares do Brasil), os russos levarão 275 mil kg de urânio in natura retirados da Bahia até 2027, devolvendo o combustível.
Segundo Dibov, a ideia da Rosatom é explorar ainda mais as reservas brasileiras. O país de Vladimir Putin quer diversificar as fontes do metal para driblar eventuais surpresas geopolíticas, e além do Brasil negocia explorar minas na Tanzânia e na Namíbia.
Hoje, cerca de 40% do que é consumido na Rússia é importado, a maior parte do Cazaquistão, dono da maior reserva mundial de urânio.
Em 2022, quando Bolsonaro visitou Putin antes da invasão da Ucrânia, a estatal disputava a finalização de Angra 3, projeto que já consumiu cerca de R$ 12 bilhões, foi envolvido em escândalos e ainda tem 35% das obras pela frente. O ânimo arrefeceu, aparentemente.
“Angra 3 é um assunto complexo, porque o Brasil precisa decidir se irá concluir a obra. Estamos, claro, abertos para discutir, temos experiência muito grande. Mas primeiramente temos interesse de construir plantas com nossos projetos”, diz o diretor.
Isso dito, ele afirma que vê espaço também para oferecer usinas maiores. “Para isso, já há legislação. Podemos ajudar o Brasil a atingir metas climáticas”, afirmou, reafirmando o ponto de venda de emissões zero na produção elétrica da matriz nuclear.
A AIEA promove essa visão, buscando tirar o estigma associado à energia atômica. Desde o acidente de Fukushima (Japão), em 2011, o mundo vive um renascimento do setor. Na semana passada, o Banco Mundial levantou o veto que tinha para financiar projetos nucleares, citando os pequenos reatores.