“Podemos ter opiniões diferentes. Mas é muito importante ter um terreno comum se quisermos viver em paz”, diz Irene Lanzaco, diretora-geral da AMI (Asociación de Medios de Información), entidade que congrega mais de 80 veículos de imprensa da Espanha. E esse terreno comum, expressão de Hannah Arendt, não está nas redes sociais, que “empurram os seres humanos a encontrar o que os torna diferentes e usa essa diferenciação como ferramenta de alienação”.
A AMI lidera uma ação judicial contra a Meta que pode ter impactos significativos na relação das empresas de tecnologia com a imprensa na Europa. “Pela primeira vez, a Meta será desafiada por seu abuso das regras de privacidade com base no efeito que isso tem sobre seus concorrentes no mercado digital.” A concorrência desleal retira recursos que poderiam estar sendo direcionados ao jornalismo profissional, explica Lanzaco.
“A imprensa precisa ser sustentável para realizar seu trabalho: fornecer informações precisas e responsáveis que ajudem a população a fazer escolhas informadas.”
Em entrevista à Folha, a dirigente analisa os predicados e defeitos na nova legislação digital europeia, o impacto da inteligência artificial nos jornais e faz um pedido aos brasileiros. “Prestem atenção à sua imprensa, assinem jornais, consumam notícias através de veículos profissionais e ajudem a mídia a ser sustentável. A sustentabilidade da imprensa é a sustentabilidade da democracia.”
Depois que Donald Trump lançou seu “Dia da Libertação”, a Europa resolveu mostrar seu arsenal contra tarifas, que inclui usar as novas legislações de mídia. Quais podem ser as consequências para o jornalismo profissional?
Acho que todos os meios de comunicação estão preocupados com o impacto que a política de Trump pode ter sobre a capacidade da União Europeia de defender um mercado digital justo. Ao mesmo tempo, a única maneira que a Europa tem de combater essa situação terrível é tornar suas regras muito claras e proteger um mercado digital em que todos os participantes possam competir em condições justas. Se a Europa não for capaz de fazer isso bem e com coragem, enfrentaremos a erosão total da imprensa. E, se a imprensa erodir, a democracia será devastada.
A legislação da UE é parâmetro para o resto do mundo, inclusive no Brasil. Isso teria potencial para mudar o cenário para a mídia?
Isso é verdade, assim como é verdade também que a Europa já cedeu. Rendeu-se às big techs de inteligência artificial, porque a legislação europeia de direitos autorais introduziu uma exceção para mineração de textos e dados. Ela é interpretada pelas empresas de tecnologia como autorização para extrair conteúdo sem nenhuma remuneração justa para os detentores dos direitos. Não acho que a intenção fosse criar essa exceção da maneira que as empresas de tecnologia estão interpretando, mas já está causando um grande dano a toda a indústria criativa na Europa.
A onda populista no continente já atinge diversos países, e as eleições mais recentes deixaram o Parlamento Europeu mais conservador. Se já há fragilidades na interpretação da legislação, um ambiente político polarizado pode derivar em mais retrocessos?
Eu acredito que o trabalho mais difícil em nível de regulamentação já tenha sido feito. No último mandato do Parlamento Europeu e da Comissão, a Lei de Serviços Digitais, a de IA, a de Mercados Digitais e a de Liberdade de Mídia foram aprovadas. Todas essas peças já fazem parte da base legal comum europeia. Se o Parlamento quiser mudar essa legislação, os deputados precisarão iniciar todo um procedimento de revisão, e isso leva muito tempo. Então, acho que o trabalho que foi feito está aqui para ficar, independentemente da mudança na composição do Parlamento. Agora, o que acho um pouco assustador para a Europa e para o mundo é que os populistas estão surgindo porque é muito fácil ouvir aqueles que gritam mais alto e que têm uma bandeira que nos faz sentir medo. Quando você está com medo, tende a comprar soluções que acredita que vão protegê-lo. Há um livro maravilhoso, “O Medo à Liberdade” [Erich Fromm, 1941], que explica como isso foi parte da causa do surgimento do nazismo antes da Segunda Guerra.
Ainda que a legislação esteja garantida, há também uma deterioração da moderação nas mídias sociais, a começar pelo X, de Elon Musk, que se tornou um cabo eleitoral na Europa, mas também nas plataformas da Meta, desde que Mark Zuckerberg aderiu publicamente a Trump. Isso influencia e prejudica o jornalismo também, não?
Você está certo. Mas já deveríamos ter aprendido uma coisa: nem editores nem jornalistas vão ter qualquer controle sobre as plataformas. Não vamos ter nenhum controle. Até agora, temos dado nosso conteúdo de graça na esperança, interminável, de que obteremos algum tipo de retorno. E os fatos mostram que o retorno que jornalistas e editores obtêm ao exibir seu conteúdo em plataformas é muito, muito escasso. Talvez o que devêssemos fazer é simplesmente voltar ao nosso DNA original e nos ater aos nossos princípios e responsabilidades: tentar ter os melhores sites de notícias que podemos oferecer ao público. E fazer campanha para que os leitores venham diretamente a eles para ler nosso conteúdo, porque realmente é o único lugar onde somos soberanos. Talvez as pessoas inteligentes voltem aos sites de notícias.
A AMI, a associação que a senhora dirige, tem uma ação contra a Meta por concorrência desleal.
É uma ação jurídica muito importante porque, pela primeira vez, a Meta será desafiada por seu abuso das regras de privacidade com base no efeito que isso tem sobre seus concorrentes no mercado digital. Temos visto que a Meta enfrentou até agora diferentes processos de usuários que querem proteger seus dados de serem roubados ou usados para entregar anúncios direcionados sem consentimento. A ação na Espanha, de modo inédito, diz à sociedade e aos anunciantes que, quando colocam dinheiro na Meta, mesmo que a Meta não esteja cumprindo a regulamentação de privacidade, eles estão deixando de comprar a publicidade digital de que a mídia precisa para ser sustentável e realizar seu trabalho: fornecer informações precisas e responsáveis que ajudam a população a fazer escolhas informadas. E isso é fundamental para a democracia. De novo.
Houve um tempo em que parte da mídia abandonava o Facebook por razões econômicas. Agora jornais europeus importantes, como o Le Monde, estão abandonando o X por razões de caráter ético, mas que serão entendidas como um ato político. Como a sra. vê essa questão?
São escolhas. Se um determinado veículo de notícias escolhe não estar no X, acho que não há problema algum nisso. Por outro lado, você também poderia argumentar que, se quiser combater ideias extremas, precisa ter um pé no chão para poder transmitir sua mensagem.
Um artigo recente na França comentava o engajamento de alguns veículos de imprensa nas críticas à Justiça do país após as condenações de Marine Le Pen e Nicolas Sarkozy. A análise mostrava que a ofensiva extrapolava o exercício de opinião e informação ao reduzir as penas a atos meramente políticos.
Eu pessoalmente tenho um enorme respeito pelos juízes. Defendo profundamente o princípio da separação de Poderes, criado por Montesquieu durante o Iluminismo. É a diferença entre haver servos ou cidadãos. E nós, cidadãos, devemos estar sob o Estado de Direito, que é administrado por juízes independentes. A menos que haja outro juiz que prove que uma determinada decisão está errada, sempre defenderei o juiz.
O caso francês, do Journal du Dimanche, repete episódios vistos em outros países europeus, onde um empresário compra um veículo profissional para influir no debate político, às vezes patrocinado por governantes, como ocorreu na Hungria.
A história mostra que esse tipo de abordagem sempre foi feito. O que ocorre em nosso tempo é que a imprensa está extremamente fraca. Essa situação torna mais viável comprar um veículo porque os antigos proprietários não conseguem manter o ritmo e abre espaço para novos participantes que podem ter interesses editoriais diferentes. Como combater essa situação? É muito difícil. Acho que precisamos fazer isso com bom jornalismo, provavelmente conscientizando os cidadãos sobre o que está em risco. Precisamos fazer com que eles se importem com o jornalismo. Às vezes tenho a sensação de que na Europa esquecemos o enorme impacto que o totalitarismo teve durante o século 20, porque estamos nos esquecendo de defender a liberdade e a imprensa. A história mostra que, se não formos capazes de defender a liberdade, alguém virá e a tirará de nós.
Como está a discussão da inteligência artificial na mídia espanhola? A AMI tem uma iniciativa sobre o uso de conteúdo jornalístico para o treinamento de IA.
O único que assinou acordos com empresas de IA foi o El País, o jornal mais reconhecido da Espanha. Elas provavelmente escolheram assinar com o El País, como fizeram com líderes de mercados em outros países. Ao fazer isso, as empresas de tecnologia estão colocando um limite na taxa de licença que estão dispostas a pagar em uma eventual disputa na Justiça. Uma coisa que a imprensa deve entender é que as grandes empresas de tecnologia não vão vir e ter uma conversa em pé de igualdade. Se quisermos exercer nossos direitos e sermos protegidos, precisamos dar um passo à frente, ter coragem e pedir a ajuda das autoridades de concorrência ou dos tribunais. São os únicos que podem fazer uma diferença substancial na abordagem às empresas.
RAIO X | IRENE LANZACO
Nascida em Madri, com mais de 20 anos de experiência em cargos administrativos na mídia, é desde 2022 diretora-geral da AMI (Asociación de Medios de Información), que reúne mais de 80 veículos de comunicação da Espanha, e vice-presidente do News Media Europe, que defende interesses do setor junto às instituições da União Europeia. Integrou o Comitê de Diretores da Enpa (European Newspaper Publishers’ Association) e da WAN-Ifra (World Association of News Publishers).