O descontrole nas contas públicas parece estar disseminado nos três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário.
Projetos que implicam aumentos de gastos são aprovados sem fonte de receita que os financiem, ao contrário do que prevê a Lei de Responsabilidade Fiscal.
Decisões judiciais implicam gastos públicos crescentes, com frequência ampliando as interpretações da legislação.
O Executivo tem sido criativo em adotar mecanismos que permitem gastos maiores do que o previsto pelo arcabouço fiscal, criado pelo próprio governo.
Esta coluna sistematiza alguns exemplos recentes nos três Poderes, mas está longe de exaurir a lista.
O resultado primário deveria ser um indicador útil para avaliar a evolução da dívida pública. Contudo, os mecanismos não convencionais adotados pelo governo mascaram a piora dos tradicionais indicadores fiscais e desqualificam as metas do arcabouço.
Em 2023, o Executivo optou pela antecipação contábil de despesas e postergação do reconhecimento de receitas. Essa decisão facilitou cumprir as metas fiscais no ano seguinte, como sistematizado por Marcos Mendes em sua coluna de 24 de janeiro. A melhoria artificial das contas públicas foi de 0,55% do PIB em 2024.
O governo tem se valido de receitas não recorrentes, como as decorrentes de concessões ou acordos sobre tributos passados, para viabilizar a expansão de despesa permanente. Despesas também têm sido excluídas para a contabilização das metas, entre outras medidas criativas.
Esse é o caso de fundos com recursos públicos que deveriam ser destinados a atividades específicas. Usualmente, nem todos os recursos são gastos anualmente, o que resulta em superávits que permitiram reduzir a dívida pública.
Novas leis propostas pelo Executivo, entretanto, autorizaram que o superávit desses fundos fosse utilizado para outras despesas. O resultado primário não é afetado. Esse mecanismo criativo foi adotado no Fundo Nacional da Aviação Civil e no Fundo Social, em ambos os casos permitindo repassar os recursos para o BNDES.
Isso significa maior endividamento público a elevadas taxas de juros junto ao setor privado em troca da concessão de empréstimos subsidiados para empresas.
Outros fundos foram igualmente liberados para fazer desembolsos financeiros que aumentariam operações de crédito subsidiadas, como o Fundo do Turismo, o Fundo Clima e o Fundo Nacional de Investimento em Infraestrutura Social.
O governo aportou recursos em fundos privados durante a pandemia, cujos recursos deveriam retornar ao Tesouro no fim da emergência, como o Fundo Garantidor de Operações e o Fundo Garantidor de Investimentos. Decidiu-se não devolver os recursos, e utilizá-los para viabilizar despesas sem passar pelo orçamento.
Houve expressivo aumento das transferências para estados e municípios desde a pandemia, que resultaram em crescimento dos seus gastos obrigatórios, sobretudo com salários e aposentadorias. Foram ampliados os Fundos de Participação dos municípios e dos estados, o Fundeb, entre outras medidas.
Muitos estados, como o Rio de Janeiro, entretanto, tinham dívidas não pagas com a União, apesar de contratos renegociados para garantir maior prazo de pagamento ou menores juros.
Esses estados preferiram aumentar seus gastos em vez de cumprir suas obrigações contratuais. Recorrentemente, o STF tem dado salvo-conduto aos inadimplentes. A conta fica para a União.
Decisões judiciais têm frequentemente reduzido as receitas e aumentado as despesas da União (quase 10% da despesa primária). O custo fiscal total dessas decisões chega a 2,5% do PIB, como documentamos com Mendes, Coelho e Barbosa no artigo “A despesa do Governo Federal decorrente de sentenças judiciais”.
Existem outros exemplos, como a forma criativa de órgãos do Judiciário para aumentar as suas remunerações, os conhecidos “penduricalhos”.
O Congresso tem sua parcela de responsabilidade, para além das emendas parlamentares e de medidas como o aumento do número de deputados.
Há poucas semanas, a Comissão de Finanças e Tributação aprovou projeto que garante tratamento especial para trabalhadores da limpeza urbana, que poderão se aposentar mais cedo, com renda mensal de R$ 3.036. A Confederação Nacional dos Municípios estima um custo anual entre R$ 4,9 bilhões e R$ 5,9 bilhões.
Existe uma PEC em tramitação para garantir aposentadoria especial após 25 anos de serviço aos agentes de saúde, entre outros benefícios. O projeto também prevê que a União deverá complementar recursos para estados e municípios para que possam cumprir a nova legislação. O mesmo ocorreu com a PEC que estabeleceu o piso da enfermagem.
O Senado aprovou recentemente projeto, liderado por um senador do PT, para caracterizar a fibromialgia como uma “deficiência”, abrindo as portas para que seus portadores requeiram o BPC (Benefício de Prestação Continuada).
Não se sabe a causa do problema, mas apenas um conjunto de sintomas, como dores, com diagnóstico por avaliação clínica, sem exames que o comprovem, e critérios sujeitos a críticas.
O número de pessoas beneficiadas é estimado em pelo menos 2% da população. Caso sejam seguidas as regras atuais do BPC, a despesa adicional poderá ultrapassar R$ 23 bilhões ao ano. O projeto também permite outros benefícios, como aposentadoria especial, isenção de imposto na compra de automóveis, cotas no serviço público, entre outros.
Recentemente, o Congresso derrubou vetos presidenciais à medida que implicavam novos subsídios cruzados para o setor elétrico. O governo estima um custo anual de R$ 35,1 bilhões e aumento na conta de energia paga pelos consumidores. O PT votou amplamente pela derrubada dos vetos.
Dois outros exemplos de uma lista bem maior: a PEC 66 propõe contabilizar apenas parte do pagamento de precatórios como despesa primária e o PL 892/2025 autoriza até R$ 5 bilhões de incentivos para a indústria química.
Usualmente, essa agenda de extração de renda do Estado une a maioria da base aliada e da oposição, esquerda e direita.
O problema das contas públicas vai além do dilema entre política social ou ajuste fiscal.