Uma ferrovia que no passado interligava os estados de São Paulo e Minas Gerais e que teve papel relevante na Revolução Constitucionalista de 1932 voltará a ver um trem com passageiros no próximo final de semana após mais de três décadas.
O trem ainda não cruzará a divisa entre os estados, num icônico túnel de 998 m, mas a pré-estreia do Expresso Mantiqueira celebra os trabalhos desenvolvidos nos últimos anos que incluíram desenterrar trilhos para que fosse possível reconstruir trechos da ferrovia. As viagens inaugurais ocorrerão nos dias 5 e 6 de julho.
O trem partirá da estação central de Cruzeiro (a 219 km de São Paulo), no Vale do Paraíba, considerado o quilômetro zero da ferrovia Minas e Rio, e seguirá até a estação Rufino de Almeida, distante seis quilômetros, no pé da Serra da Mantiqueira, após o primeiro túnel da ferrovia, o que totaliza um roteiro inicial de 12 quilômetros.
A recuperação da ferrovia está sendo feita pela ABPF (Associação Brasileira de Preservação Ferroviária), por meio de sua regional Sul de Minas.
Será utilizada na rota uma locomotiva diesel-elétrica e um carro de passageiros aberto, do tipo jardineira, ambos restaurados. Fabricada em 1958 nos Estados Unidos pela American Locomotive Company, a locomotiva chegou ao Brasil num lote com outras nove unidades para a Companhia Paulista de Estradas de Ferro, mas teve também outras proprietárias.
Ela foi transferida para a Companhia Mogiana de Estradas de Ferro e, em 1971, incorporada à Fepasa (Ferrovia Paulista S.A.), que assumiu o espólio da Paulista, da Mogiana, da Estrada de Ferro Sorocabana, da Estrada de Ferro Araraquara e da Estrada de Ferro São Paulo e Minas.
Por sorte não teve o mesmo fim de outras locomotivas antigas –ser cortada por maçaricos– e foi comprada por uma empresa que a utilizou em manobras de vagões no porto de Santos.
Abandonada por ter baixa potência, foi comprada pela ABPF em 2017, após meses de negociação, e sua restauração durou cerca de seis anos.
Os bilhetes para a viagem inaugural custam R$ 50 e poderão ser comprados no próprio guichê da estação nos dois dias. Segundo a ABPF, serão feitas viagens conforme a demanda.
Ao chegar à estação Rufino de Almeida, de 1902, o trem terá uma parada para preparar o retorno à estação central de Cruzeiro –que foi inaugurada em 1878– e a estimativa é que a viagem toda seja feita em uma hora.
No caminho, os turistas encontrarão logo no início trechos planos da área urbana da cidade paulista e, já na zona rural, muita vegetação e um pequeno túnel (10,8 m), rota que é apontada por membros da associação como a mais bonita e, ao mesmo tempo, complexa da antiga estrada de ferro.
BATALHA HISTÓRICA
A ferrovia teve sua construção iniciada em 1880 e foi inaugurada quatro anos depois. A extensão total do trecho Cruzeiro-Passa Quatro (MG) é de 35 quilômetros, dos quais cerca de 10 quilômetros de Passa Quatro até o Túnel da Mantiqueira estão em funcionamento, com o Trem da Serra da Mantiqueira.
A região do túnel foi um dos mais relevantes locais de conflitos na Revolução Constitucionalista de 1932. Pesquisadores apontam o registro de centenas de mortes de combatentes na região, inclusive a do tenente-coronel Fulgêncio de Souza Santos, então comandante do 7º Batalhão da Força Pública de Minas Gerais.
O túnel era estratégico por ser o meio de transporte de tropas para regiões de conflitos e por ter sido bloqueado por uma locomotiva no lado paulista com o objetivo de impedir o avanço de tropas inimigas. Coronel Fulgêncio batizou a estação na cidade mineira, restaurada em 2004.
O dia 9 de julho marca o início da Revolução Constitucionalista, revolta que São Paulo organizou contra o governo de Getúlio Vargas (1930-1945). Os paulistas queriam uma nova Constituição para o país, o que Vargas não admitia.
A data é considerada feriado estadual desde 1997, quando Mário Covas (1930-2001), então governador, assinou o projeto de lei 9.497.
Chegar até o túnel pelo lado paulista exige recuperar 24 quilômetros de trilhos, que integram o projeto de restauração da ABPF –o maior desde a sua criação, na década de 1970.
Depois de deixar de fazer parte da Minas e Rio, a ferrovia integrou a Rede Sul Mineira de Viação, a Rede Mineira de Viação, a Viação Ferréa Centro-Oeste e a Rede Ferroviária Federal, até ser desativada no começo dos anos 1990.
Para concluir esse trecho de seis quilômetros, a associação precisou até desenterrar cerca de 300 m de trilhos da linha principal na área urbana, num trabalho essencialmente manual, para evitar mais danos à linha férrea.
Quando alcançar o túnel, vai conectar com o trecho que já opera em Passa Quatro. Falta reconstruir 18 quilômetros de ferrovia, limpar todo o leito, trocar 28.500 dormentes, instalar 114 mil pregos, remover barreiras e recompor aterros.
Não há prazo estabelecido para a conclusão, já que a obra é feita com recursos próprios da associação e algumas parcerias. A CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) doou 3.000 dormentes, o suficiente para dois quilômetros de trilhos.
Além da pré-estreia do roteiro, a estação ferroviária de Cruzeiro também abrigará seu primeiro encontro de ferromodelismo nos dias 5 e 6, das 9h às 17h, com a participação de expositores de diversas localidades.
CRONOLOGIA DA REVOLUÇÃO
3.out.1930
É deflagrado o movimento que levou o gaúcho Getúlio Vargas ao poder. Ele assume um governo provisório depondo Washington Luís da Presidência da República
17.fev.1932
Os grandes partidos de São Paulo criam a Frente Única Paulista, que exigia nova Constituição para o país
23.mai
Quatro estudantes são mortos durante um protesto contra Vargas em São Paulo; de suas iniciais surge a sigla MMDC
9.jul
Militares antecipam a deflagração da mobilização, marcada para 14 de julho, pegando aliados de surpresa
22.ago
Primeiro combate aéreo no país, em Cruzeiro: dois aviões paulistas enfrentam dois aviões federais
12.set
O governo ocupa o porto de Santos, sob bloqueio desde o início da revolta, mas os combates seguem até dia 24
2.out
As tropas paulistas se rendem ao governo Vargas; líderes do movimento vão para o exílio
3.mai.1933
São realizadas eleições no país para a escolha da Assembleia Nacional Constituinte, demanda dos paulistas