Anna Petherick é diretora do Lemann Foundation Programme na Blavatnik School of Government da Universidade de Oxford. Reconhecida por seu trabalho comparativo em políticas públicas, ela coordena um programa que faz a ponte entre métodos acadêmicos rigorosos e aplicação prática para gestores públicos, especialmente no contexto brasileiro.
Ela leciona para estudantes de pós-graduação e líderes sêniores em departamentos de governo. Anna também dirige o Lemann Foundation Programme de Oxford. Cientista política de formação, sua pesquisa tem foco em polarização política, gênero e integridade. Antes de se tornar uma acadêmica, ela editou uma seção do periódico de ciências Nature e trabalhou como correspondente internacional e de ciência para a The Economist.
Na entrevista abaixo, Anna compartilha memórias marcantes da sua primeira experiência no Brasil, incluindo o choque diante da desigualdade, e descreve como o programa equilibra profundidade teórica e impacto real. Ela revela insights sobre o que gera comprometimento e eficácia no serviço público, fala sobre os desafios da polarização política e propõe estratégias para fortalecer a escuta, a inclusão e a cultura institucional em prol do bem comum.
Quais foram os choques culturais positivos e negativos que você experimentou quando visitou o Brasil pela primeira vez?
Ah, essa é fácil! Talvez seja um cliché, mas eu sempre sinto muita energia e inspiração no Brasil. Os brasileiros são mais presentes e apaixonados em tudo o que fazem do que os britânicos ou os europeus do Norte. Pelo lado negativo, eu lembro de um dos meus primeiros dias no Brasil, há mais de duas décadas, em uma rua do Rio de Janeiro: de um lado, uma concessionária de carros de luxo; do outro, uma favela. E de olhar para as outras pessoas, perplexa, pensando: “Como que isso é estável? Por que não há uma revolução?”. Eu era uma adolescente, observando uma parcela da sociedade com meu olhar europeu. Já tinha visto pobreza antes, mas não ricos e pobres se relacionando daquela forma. Ao longo dos anos, fiquei mais acostumada com a desigualdade brasileira, mas nunca quero esquecer daquele espanto. Imagine onde o Brasil estaria se todos tivessem a oportunidade de desenvolver seus talentos e contribuir para a sociedade o máximo que pudessem.
Você dirige o Lemann Foundation Programme na Blavatnik School of Government da da Universidade of Oxford. Este programa visa a comparar experiências internacionais com foco no Brasil. Na prática, o que significa liderar um programa que precisa equilibrar profundidade acadêmica com utilidade prática para gestores públicos?
Nós consideramos projetos com base no seu potencial de impacto. Começamos definindo um problema, depois perguntamos qual conhecimento nos ajudaria a resolvê-lo, e então fazemos um brainstorm de como novas pesquisas poderiam ajudar. Daí consideramos como esse conhecimento pode ser utilizado, e por quem. A pesquisa por si mesma certamente tem um propósito no mundo, mas tentamos ser mais aplicados, e colaborar para que o conhecimento leve à transformação.
Talvez o que torne o programa incomum é que trabalhamos muito para afiar constantemente nossos instintos sobre o que é conhecimento útil para as pessoas no setor público. O time está em diálogo constante com todos os tipos de perfis na administração pública brasileira – às vezes, viajamos de Oxford para o Brasil apenas para participar de reuniões que possam nos ajudar a entender as necessidades dos servidores.
Um dos pilares do programa é a questão: o que o Brasil pode aprender com outros países, e o que outros países podem aprender com o Brasil. Quais foram as descobertas mais surpreendentes dessa troca até agora?
Sabe, tem dias em Oxford em que dou aula para pessoas de 60, 70 países diferentes. O mais surpreendente é que frequentemente estou descrevendo um dilema político ou organizacional para a classe resolver, e estudantes de partes opostas do planeta estão convencidos de que estou descrevendo um caso real do país deles.
Há cerca de dois anos, o programa e seus parceiros trouxeram especialistas em política de educação do Quênia e do Paquistão para Sobral, no Ceará, para testemunhar o sucesso do município em educação, e para que conversassem com os professores e políticos locais. Eu estava preocupada com a barreira da língua, mas não precisava. Quando as pessoas estão profundamente motivadas – ávidas para melhorar educação, saúde, ou o que quer que importe para elas – elas acham uma forma apesar das dificuldades, e nesse caso específico, até para trocar ideias cheias de nuances. No final daquela viagem, os quenianos estavam na mídia local, dançando no restaurante e pechinchando nas lojas de Sobral – sem que falassem uma única palavra de português!
O programa foca não apenas em instituições, mas também nos indivíduos trabalhando no setor público. O que você aprendeu sobre os fatores que fazem um servidor público ser mais efetivo e comprometido com o bem comum?
É comum no mundo inteiro que os burocratas sejam associados a características negativas; não inovam, são ineficientes, criam papelada e processos só por criar, e não coordenam direito com aqueles trabalhando em outras partes do governo. Claro que isso é frequentemente uma inverdade: algumas das pessoas mais trabalhadoras que eu conheço são servidores.
A chave para gerenciar bem organizações públicas é ser excepcionalmente claro sobre seu propósito público – que não pode ser apenas pressuposto, ou ambíguo – e que o projeto de entregar esse propósito seja algo incutido na cultura organizacional. Então, você pode suscitar nas pessoas que lá trabalham o orgulho em fazer algo que importa de forma tangível para elas, sua família, amigos e comunidade – e liberdade para decidir com autonomia, na medida em que você sabe que estão mirando na mesma coisa. Muitas vezes as pessoas entram no setor público com um senso de vocação, que é erodido pelo fracasso em batalhar pelo propósito. Organizações públicas bem gerenciadas mantêm a vocação viva.
Que tipo de treinamento ou apoio institucional tem o maior poder de fortalecer o poder transformador de profissionais do setor público?
Há um grande benefício em criar espaços para as equipes discutirem de forma significativa as forças e fragilidades da sua performance institucional. A evidência sugere que isso costuma levar a melhores resultados do que reformas “de cima para baixo”. Para isso ser possível, você precisa desenvolver habilidades de escuta, deliberação e julgamento imparcial entre os profissionais do setor público.
Na Blavatnik School, ensinamos servidores públicos sêniores sobre reconhecer e contrabalançar seus próprios vieses subconscientes, habilidades igualmente importantes para os servidores que interagem com cidadãos. Também ensinamos servidores sobre gestão em escala: com frequência, eles são promovidos — passam de liderar um grupo pequeno ou médio para, de repente, liderar um grupo vasto — sem apoio para entender o que deveriam manter (ou ajustar) em seu estilo de gestão.
Como que a mentalidade de “nós contra eles” aparece nas interações entre cidadãos e servidores públicos? Como isso afeta a qualidade dos serviços públicos? E o que pode ser feito para reduzir esse tipo de desconfiança mútua?
No Brasil, servidores públicos – assim como cidadãos – obviamente têm o direito de ter suas próprias preferências políticas e se engajarem em campanhas, mas há regras muito rígidas sobre nunca, no trabalho, revelar ou agir motivado por suas preferências políticas pessoais. Isso vale para a polícia, professores, médicos públicos e por aí vai. Em colaboração com pesquisadores na FGV, nós temos aplicado questionários para entender as experiências dos cidadãos em suas interações com servidores, e descobrimos que, apesar da lei, os cidadãos têm um senso da afiliação política dos servidores em 60% das interações reportadas com eles, e geralmente com certeza total. Estamos trabalhando para entender as diferentes formas que isso acontece, e sabemos que não é apenas em conversas sobre política em si.
As consequências são em duas direções. Primeiro, uma qualidade reduzida do conteúdo das interações, em parte porque a competência e motivação do servidor de ajudar o cidadão é considerada menor se o cidadão é de um diferente “campo” político. Segundo, uma chance menor de os cidadãos trabalharem com os servidores para resolver os problemas — ou sequer tentarem.
Em nossos dados, 65% de todas as interações reportadas com um policial são de pessoas que votaram no Bolsonaro em 2022, e apenas 35% por aqueles que votaram no Lula. Esse não parece ser o cenário real da criminalidade no país! Estamos trabalhando para entender isso. A direção do viés é oposta na área de educação. Esses tipos de padrões importam, substantivamente, porque o setor público depende de os cidadãos estarem dispostos a trabalhar com eles para resolver problemas e melhorar resultados. A polícia não pode resolver crimes que não forem reportados; médicos não podem curar pessoas que não os procurem nos estágios iniciais da doença. Há vários remédios institucionais possíveis aqui, incluindo esforços para criar culturas organizacionais mais equilibradas e menos politizadas. Também pode ser sábio introduzir mais opcionalidade para os cidadãos. Isso aconteceu com a criação de delegacias da mulher, for exemplo, para denúncia de violência de gênero. Há pesquisas que mostram que as mulheres que vivem em áreas com essas delegacias confiam mais na polícia, e que os feminicídios são de fato menores nesses municípios.
Um dos estudos do programa mostrou que é possível reduzir a polarização afetiva entre cidadãos de diferentes partes do espectro político no Brasil. O que isso nos ensina sobre o papel da escuta, diálogo e do desenho de políticas em um contexto polarizado?
Que essas coisas realmente importam! Todo mundo acredita que sabe ouvir, mas ao mesmo tempo está sujeito a confiar demais nas próprias percepções sobre o outro. No estudo que você menciona, pedimos para as pessoas estimarem a porcentagem daqueles em grupos políticos diferentes que concordam com uma série de políticas. Os respondentes estavam radicalmente errados! (e isso não é exclusivo ao Brasil – acontece ao redor do mundo). Por exemplo, a porcentagem real de lulistas nos nossos dados que dizem que o aborto nos primeiros três meses de gravidez deve ser legalizado foi de 46%, pouco abaixo da metade. Mas os lulistas estimaram que essa taxa era de 60% entre seu próprio grupo, e os bolsonaristas achavam que era acima de 80% entre os lulistas.
Em um experimento, descobrimos que se você corrigisse as pessoas sobre seus próprios erros de percepção das opiniões do “outro” lado, elas passavam a desgostar menos dos seus oponentes, e a ver eles como mais inteligentes. O mesmo experimento, agora sobre mal-entendidos em relação ao nível de apoio a cotas raciais em universidades, elevou o apoio para essa política tanto entre bolsonaristas quanto entre lulistas.
Como promover a inclusão social, de gênero e de raça em instituições públicas que ainda operam em estruturas altamente excludentes?
O governo atual introduziu políticas de cota no serviço público que, enquanto estiverem em vigência, tem algum papel de melhora. Mas ter alguém novo na sala não significa que essa pessoa será ouvida. Na minha visão, uma mudança sustentável exige uma transformação cultural profunda sobre o que é considerado uma forma legítima de agir dentro das organizações públicas. Se você tem um propósito público, e sua organização está focada em realizar esse propósito, então você precisa entender o “público” que você está servindo, e com isso a diversidade das suas aspirações e necessidades. Se essa perspectiva ficar inculcada nos gestores públicos e seus chefes, não importa sua cor ou gênero, então ficará óbvio que eles estão ajudando a si mesmos e a fazer bem os seus próprios trabalhos ao empregar uma força de trabalho diversa, junto com os processos de apoio apropriados.
Eu convidaria todos no Brasil – dentro e fora do setor público – a enxergar a desigualdade brasileira pelos olhos de uma ingênua adolescente europeia para acreditar que não precisa ser dessa forma, e imaginar um contrafactual invisível, de onde o país poderia estar se as suas instituições públicas estivessem trabalhando para aproveitar ao máximo os talentos dos brasileiros.
O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço “Políticas e Justiça” da Folha de S.Paulo sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Anna Petherick foi “Maria Maria”, de Milton Nascimento e Fernando Brant.