A polêmica desencadeada pelo decreto para aumentar o IOF resultou em um conflito institucional e algumas narrativas. Nem todas acuradas.
O governo reagiu ao decreto legislativo que derrubou o decreto do Executivo com dois argumentos. Primeiro, precisa de receita adicional para poder cumprir as metas do arcabouço fiscal. Segundo, a rejeição do aumento do imposto beneficiaria os mais ricos.
O primeiro ponto esquece vários problemas conhecidos desde a apresentação do arcabouço. A PEC da Transição promoveu o retorno da indexação das despesas com saúde e educação à receita do governo. Quanto mais receita, mais despesa.
O arcabouço limitou o crescimento da despesa total a, no máximo, 2,5% acima da inflação. Para cumprir a meta, o governo utilizou de diversos mecanismos, inclusive novas leis aprovadas pelo Congresso, para aumentar a receita.
Como as despesas obrigatórias cresceram mais do que 2,5%, as despesas discricionárias foram sendo comprimidas, levando à “falta de dinheiro” que hoje ameaça gastos do Executivo.
Crise anunciada. Como documentamos com Marcos Mendes e outros coautores em um longo texto repletos de simulações, assim que o arcabouço foi anunciado, qualquer que fosse o aumento de receita, parte relevante da despesa teria que aumentar igualmente. O retorno do aumento anual acima da inflação do salário mínimo e dos salários dos servidores agravava a inconsistência.
Como o arcabouço implementou o teto de 2,5% da despesa total, as despesas discricionárias teriam que ser, ao final, comprimidas. Com o tempo, essa redução levaria a uma paralisia de diversas políticas públicas.
Novos aumentos da receita atenuam o problema no curto prazo, mas não resolvem o problema técnico estrutural do arcabouço e das demais regras de despesas. Só empurram o impasse um pouco mais para a frente.
O segundo ponto, de que a rejeição do decreto do IOF representa a resistência dos grupos de maior renda a pagar mais imposto, é uma narrativa sedutora, mas imprecisa.
Tributos que incidem sobre a venda de bens e serviços, chamados de indiretos, incidem legalmente sobre o vendedor. Geralmente, contudo, esses tributos levam ao aumento dos preços do que é vendido.
A conta fica para o comprador. O vendedor perde porque as vendas caem. Mas a incidência econômica do tributo é paga pelo comprador.
No caso do IOF sobre crédito, o efeito mais provável é o aumento das taxas de juros pagas por pequenas e médias empresas. As grandes empresas têm acesso ao mercado de capitais e são menos afetadas.
A legalidade dos decretos do Executivo e o do Congresso tem sido questionada. O Executivo argumenta que tem o direito constitucional de fixar o IOF, e o Congresso estaria usurpando esse direito.
O problema é que o IOF foi previsto para ser regulatório, corrigindo eventuais problemas em alguns mercados. Para isso, a Constituição deu o direito de ação tempestiva do Executivo em função da possível ocorrência de dificuldades localizadas que precisariam de uma ação imediata.
Trata-se de um imposto extrafiscal, para usar o jargão, cujo papel não seria arrecadar.
Para os impostos fiscais, aqueles cujo papel é arrecadar, a Constituição prevê um rito, comum a outros países. O governo envia uma proposta para o Congresso, que pode aprová-la, modificá-la ou rejeitá-la.
Cumprido o rito, a Constituição também prevê prazos para que as mudanças nos impostos entrem em vigor. O Executivo teria usurpado o poder do Congresso.
O governo também anunciou a redução de 10% dos benefícios tributários, uma demanda frequente de diversos setores da sociedade. Só que, com frequência, esses setores não têm clareza de quem são os beneficiados pelos gastos tributários.
Os gastos tributários incluem Simples, Zona Franca de Manaus, agroindústria, desenvolvimento regional, entidades filantrópicas, dedução das famílias com despesas com saúde e educação, cesta básica, apoio a pessoa com deficiência, benefício do trabalhador, entre outros.
O governo afirmou que houve resistência do Congresso a um corte linear de todos os gastos tributários. O resultado é que diversos desses beneficiários estão fora do corte de 10%. Por isso, apesar dos gastos tributários de cerca de R$ 550 bilhões, o próprio governo estima que essa medida deverá arrecadar R$ 15 bilhões, caso não ocorram novas exceções.
Empresas no lucro presumido, que faturam até R$ 78 milhões, têm um regime tributário especial e pagam cerca de 15% de Imposto de Renda. Várias são empresas de serviços, com poucos sócios e custos. Estão fora do ajuste.
O mesmo ocorre com crédito subsidiado concedido a empresas, por vezes grandes, por meio do BNDES e de outros bancos públicos.
Fora do ajuste também está a remuneração de muitos membros do Judiciário que, por critérios adotados pelas próprias cortes, recebem bem mais do que o teto constitucional.
O resumo da ópera é que, para utilizar uma metáfora frequente de autoridades, muitos da “cobertura” estão fora do ajuste. Em razão disso, vários dos andares mais baixos, como pequenas e médias empresas, serão bem onerados.
A solução proposta é paliativa para enfrentar os problemas do arcabouço fiscal. Além disso, a dívida pública vai continuar a aumentar.
A inconsistência das regras fiscais e a falta de controle do crescimento da despesa pública obrigatória resultam na incerteza sobre quais serão as alterações nas regras tributárias no futuro próximo. Essa incerteza prejudica as decisões de investimento e de produção.
Quanto mais tempo demorar para construir um sistema fiscal sustentável, piores ficam as expectativas para os anos à frente.