O alarde de Itaipu com o seu resultado em 2024 foi muito mal recebido no setor de energia. A usina binacional divulgou em tom de comemoração que registrou um superávit de US$ 680 milhões, quase R$ 4 bilhões, na conta de exploração, o que é praticamente 16 vezes mais que no ano anterior. Anunciou também um resultado contábil de US$ 443 milhões, ou R$ 2,6 bilhões —o triplo do exercício anterior.
Especialistas lembram que, pelo tratado binacional entre Brasil e Paraguai, a usina obrigatoriamente opera pelo sistema de tarifa pelo custo. Ou seja, deve cobrar do consumidor apenas o necessário para operar e cumprir as suas obrigações, anualmente, sem gerar lucro. Saldo positivo vira desconto na tarifa.
A conta de exploração abriga o dinheiro que é usado para obras e projetos sociombientais, e uma sobra tão grande ali causou espanto. O resultado contábil, por sua vez, equivale ao lucro, explicaram à Folha analistas do mercado financeiro —e lucro dos bons para uma única usina. Para se ter uma ideia, supera o resultado do grupo Equatorial e fica só um pouco abaixo do da Copel.
“O resultado de Itaipu corrobora ainda mais a necessidade de rever para baixo a tarifa praticada no Brasil”, afirma a diretora técnica da consultoria PSR Ângela Gomes, que acompanha os balanços da empresa e ainda está analisando esse último.
Para entender como Itaipu chegou a esses números, é preciso voltar um pouco no tempo.
Segundo estudos técnicos do setor e da própria usina, a tarifa de Itaipu deveria ter caído para entre US$ 9 e US$ 10 a partir da quitação da dívida, em 2023, mas não houve essa redução. Entre maio e abril do ano passado, os governos de Luiz Inácio Lula Silva e Santiago Peña fizeram o inverso: aumentaram a tarifa, chamada de Cuse (Custo Unitário do Serviço de Eletricidade).
Ela foi elevada de US$ 16,71 por kW (quilowatt) para US$ 19,28 e congelada por três anos, de 2024 a 2026. Com essa alta, foi adicionado um extra de US$ 660 milhões, totalizando um caixa de US$ 1,5 bilhão para que os dois países possam bancar obras e projetos socioambientais.
O acordo de 2024 foi muito criticado no setor, por ser interpretado como prejudicial para quem paga a conta de luz no Brasil. Quem conhece a estrutura financeira da usina diz que pelo menos US$ 1, 2 bilhão saiu do bolso dos brasileiros das regiões Sul, Sudeste e Centro Oeste.
O saldo positivo agora alimenta a percepção de que Itaipu tem mais dinheiro do que consegue gastar —agravando a avaliação de descumprimento do tratado binacional.
Procurada pela reportagem, Itaipu respondeu, em nota, que é incorreto dizer que o tratado está sendo descumprido.
“O Cuse e o orçamento foram estabelecidos em um contra to trienal abrangendo os anos de 2024 a 2026. Nesse modelo, a ocorrência de saldos é uma prática comum e não pode ser interpretada como uma violação do tratado de Itaipu”, destaca o texto enviado à Folha.
O presidente da Frente Nacional de Consumidores, Luiz Eduardo Barata, não vê sentido na interpretação da usina. Contrapõe que o superávit é praticamente uma confissão de que Itaipu cobra a mais que o necessário, desrespeitando o regulamento maior.
“Segundo o tratado, Itaipu opera com orçamento anual e, caso haja saldo positivo, ele é integralmente usado na redução da tarifa do ano seguinte. Se os governos queriam mudar isso, teriam de ter apresentado uma nota reversal, como ocorreu em outros momentos, com outras alterações.”
Nota reversal é um tipo de carta usada na esfera diplomática, em que países alteram o entendimento original sobre um determinado tema. A inclusão da missão socioambiental, que não estava no tratado originalmente, e o aumento do fator de reajuste da cessão de energia do Paraguai cumpriram esse rito, por exemplo.
A Frente tem questionado o governo e o titular da pasta de Minas e Energia, Alexandre Silveira pela falta de medidas para revolver problemas que se avolumam no setor energia e levam a aumentos na conta de luz. Na sexta-feira (11), publicou uma nota lembrando que há um ano, em 10 de abril de 2024, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se reuniu com especialistas do setor e incumbiu Silveira de construir uma reforma para melhorar o ambiente de negócios.
“Até o momento, o que se viu foram medidas provisórias duvidosas ou ideias vagas e populistas”, destacou o texto.
No anúncio festivo sobe a sobra em Itaipu, causou mais surpresa ainda o texto narrar que a usina fez um “aporte voluntário de US$ 301 milhões à conta de comercialização para aliviar a tarifa”. O valor na verdade foi um repasse à tarifa no Brasil, prometido pelo MME (Ministério de Minas e Energia), para evitar que a conta de luz subisse por causa do “contrato trienal” firmado com o Paraguaio.
Esses mesmos US$ 301 milhões foram insuficientes para cobrir a diferença. A conta de comercialização, que é administrativa pela ENBPar, ficou negativa. Quando isso acontece, a tarifa de Itapu precisa ser elevada no Brasil.
Para tapar o rombo, evitando aumento na tarifa e a repercussão pública negativa, o governo tirou do consumidor de outro jeito. Por meio de um decreto, reestruturou o uso do chamado bônus de Itaipu (nome dado à devolução de dinheiro cobrado a mais do consumidor). O bônus, historicamente, vinha sendo usado para reduzir a tarifa de energia dos mais pobres.
O aumento das críticas a Itaipu já mobiliza parlamentares. O senador Esperidião Amin, por exemplo, abriu três frentes de discussões na Casa apenas neste começo de ano.
Em 31 de março, protocolou na CTFC (Comissão de Transparência, Governança, Fiscalização e Controle e Defesa do Consumidor) do Senado uma proposta de fiscalização e controle de Itaipu.
Amim defende que a própria CTFC e o TCU (Tribunal de Contas da União) tenham acesso aos termos do contrato trienal firmado em 2024 entre Brasil e Paraguai para avaliarem “se a estrutura tarifária anunciada pelo MME é sustentável ou se representa um arranjo precário, fadado a colapsar com o menor abalo financeiro”. Para essa proposta, já foi nomeado como relator o senador e ex-juiz Sérgio Moro (União Brasil-PR).
Em 2 de abril, o senador também apresentou um requerimento na Comissão de Serviços de Infraestrutura para que o ministro Alexandre Silveira vá à Casa explicar o mesmo acordo.
Em outro requerimento, na CCAI (Comissão Mista de Controle de Atividades de Inteligência), ele propõe uma avaliação sobre o que a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) espionava em Itaipu e as circunstância do vazamento dessa ação. Ao saber da arapongagem, o Paraguai suspendeu as negociações do Anexo C, que trata justamente dos termos financeiros de Itaipu. O setor teme que a Cuse não caia após essa confusão.
Na sexta-feira, Itaipu recepcionou os presidentes dos Congressos dos dois países, os senadores David Alcolumbre, pelo Brasil, e Basilio Núñez, do Paraguai. Parte da apresentação sobre a usina incluiu fazer a defesa dos projetos socioambientais bancados pela binacional junto a esses parlamentares.
OUTRO LADO
Tarifa em vigor foi pactuada por Brasil e Paraguai, diz Itaipu
Em sua resposta à Folha, além de destacar que segue o contrato trienal, Itaipu reforçou o caráter binacional da usina.
“O saldo, que é binacional, reflete também o uso dos recursos pela margem paraguaia”, afirmou.
“A tarifa em vigor foi pactuada em conjunto com o Paraguai, que é dono de 50% da usina.”
Também destacou que a empresa destinará US$ 358,8 milhões em 2025 e US$ 350,8 milhões em 2026 para a modicidade tarifária. Os valores cobrem o cashback prometido pelo governo e Itaipu complementa que com o recurso está “cumprindo a política pública definida pelo Governo Federal e reforça que manterá a mesma tarifa no mercado regulado adotada em 2023.”
Em resposta as críticas, o MME, também em nota, afirmou que trabalha pela modicidade tarifária
“Desde o início desta gestão, o ministro Alexandre Silveira trabalha para garantir a uma redução estrutural da tarifa de Itaipu, auxiliando nas tratativas para manter a tarifa atual para o consumidor brasileiro em curto prazo, associada a consolidação da negociação para redução ao valor de custo da usina a partir de 2027”, diz o texto.
Informou ainda que o MME prestou apoio técnico, mas destacando que a negociação é conduzida pelas altas partes dos dois países.
Também destacou que a reforma do setor elétrico é uma prioridade e que a sua proposta será entregue ainda este mês à Casa Civil.