Wolfram Seindemann, CEO de Tecnologia da Moeda da alemã G+D (Giesecke+Devrient GmbH), uma das principais empresas de papel-moeda do mundo, conhece experiências de pagamentos eletrônicos em outros países e ouviu relato da Folha sobre o avanço do Pix no Brasil. Não pareceu impressionado.
“Dinheiro não vai morrer. Dinheiro é legal. Diminui o impacto de crises. Olhe o caso da Suécia”, afirma.
Ele se refere à nação europeia com menor número de caixas eletrônicos, segundo o FMI. Pela lei chamada de “liberdade de contrato”, nenhuma empresa do país é obrigada a aceitar dinheiro. Nem mesmo bancos. O uso de pagamento em papel em 2024 caiu pela metade em relação a 2007. Serviços públicos e contas de consumo não podem ser pagas com notas ou moedas.
Mas, no final do ano passado, o governo divulgou um documento à população com algumas recomendações. A que mais chamou a atenção foi: andem com dinheiro no bolso. O pedido faz parte do relatório “In Case of Crisis of War” (no caso de crise causada por guerra, em inglês), preparado por medo da possível escalada do conflito entre Rússia e Ucrânia.
Esse mercado é controlado por um restrito grupo de empresas, algumas centenárias, que enfrentam queda de receita na divisão de moeda. A maioria tem mudado (ou dividido) o foco de atuação para os setores de pagamentos eletrônicos e cibersegurança. Mas fazem também lobby sobre a necessidade de manter o dinheiro físico em circulação.
A britânica De La Rue, por exemplo, fundada em 1821, registrou queda de 18,7% de receitas em seu departamento de moedas no ano passado, em relação a 2023. Em relatório, a empresa identifica que “o crescimento de pagamentos digitais tem resultado na mudança do comportamento do consumidor” e esta é uma tendência que deve continuar.
Assim como as concorrentes, ela identificou a necessidade de investir em soluções financeiras eletrônicas.
Pesquisa do FGVCemif (Centro de Estudos de Microfinanças e Inclusão Financeira da Fundação Getulio Vargas) mostra que 60% dos entrevistados são usuários ativos do Pix: realizaram pelo menos uma transação por mês em 2024.
O número apresentado pelo Banco Central em dezembro mostrou que este foi o meio de pagamento mais popular no país, usado pelo menos uma vez por 76,4% da população no ano passado.
A expansão das transações eletrônicas remete ao termo “cashless society” (sociedade sem dinheiro), usado por entidades como o FMI (Fundo Monetário Internacional) para designar países que parecem destinados a usar um sistema de pagamentos sem meios físicos. Algo previsto em 1994 pelo economista americano Joel Kurtzman no livro “A morte do dinheiro”.
“A prioridade deveria ser não eliminar o dinheiro [papel] inteiramente, mas promover transações eletrônicas e desenvolver uma infraestrutura robusta para suportá-las. Temos de abraçar essa realidade agora. Há um apetite crescente por uma sociedade sem dinheiro”, afirma Mehul Desai, autor de “August of Money: quest for a cashless society” e especialista em empreendedorismo e inovação da Universidade de Chicago.
No caso brasileiro do Pix, o uso mais intenso está entre as pessoas de menor renda. Cerca de 75% dos usuários recebem até dois salários mínimos e 69% estão na faixa de dois a cinco salários mínimos.
O volume de notas em circulação no país, em dezembro do ano passado, era de 7,5 bilhões de unidades. Desconsiderada a desvalorização do real no passar dos anos, o meio circulante nacional aumentou de forma considerável nesta década. Em 2001, o número de cédulas era de 1,73 bilhão.
Mas de acordo com a pesquisa do Banco Central, publicada em dezembro de 2024, a porcentagem das pessoas que usam dinheiro físico com pouca frequência subiu de 46,3% (em 2021) para 54,3% e as que não o utilizam mais foi de 9,2% para 14%.
No mesmo período, as transações de Pix para pagar contas ou fazer compras passaram de 46,1% para 76,4%; cartão de débito subiu de 61,7% para 69,1%; dinheiro caiu de 83,6% para 68,9%; cartão de crédito, foi de 44,5% para 51,6%; e débito automático, de 24,5% para 32,8%.
A indústria que “fabrica dinheiro” aponta um dado para defender não só a manutenção, mas a expansão do uso de notas e moedas, A raiz dela está no pedido do governo sueco aos seus cidadãos. Quando há qualquer acidente natural que interrompa o fornecimento de energia ou impeça o uso de artefatos eletrônicos, o meio físico é o único pagamento possível. A possibilidade de guerra é uma dessas situações.
Empresas como a G+D fazem relação disso com os incidentes cada vez mais comuns causados pelo aquecimento global.
“É um item essencial para a preparação de emergência. Em tempos de crise, de desastres naturais, blecautes ou instabilidade política, sistemas digitais podem falhar. Dinheiro continua uma opção confiável. Acompanhar as notícias globais não tranquiliza ninguém. Em um mundo de incertezas, a simplicidade e segurança do dinheiro físico não devem ser desprezados. É crucial que a gente preserve nossa liberdade de escolhê-lo como forma de pagamento”, diz France Maroevic, diretor geral da ICA (International Currency Association ou Associação Internacional de Moeda , em inglês).
A sigla reúne empresas e entidades do mercado da fabricação de notas e moedas. A ICA também vê a discussão de uma sociedade sem dinheiro com algo fora da realidade global. Lembra que, segundo o Banco Mundial, 1,4 bilhão de pessoas no planeta (17,6% da população) não possuem conta bancária.
A instituição financeira internacional estima também que 5 bilhões de pessoas não têm acesso a uma conexão de qualidade à internet. O FMI (Fundo Monetário Internacional) acredita que seriam necessários investimentos de US$ 400 bilhões (R$ 2,29 trilhões) para resolver este problema.
O setor fez lobby pela resolução da União Europeia que ordena os países do grupo a obrigarem seus comércios a aceitarem pagamento em dinheiro. Mas não conseguiu derrubar a limitação a 10 mil euros (R$ 61,8 mil).
“Restringir o pagamento em dinheiro, na verdade, reduz o poder de escolha, a liberdade e pune grupos mais frágeis da sociedade que precisam de um sistema forte e diverso de pagamentos”, completa Maroevic.
“Apesar do que se diz [sobre uma sociedade de pagamentos eletrônicos], dinheiro tem um papel a cumprir na sociedade e isso não vai mudar. E vemos que existe demanda por isso”, diz Wolfram Seindemann, da G+D, que opera em 40 países e já produziu para 145 bancos centrais.
Questionado se, naquele momento, tinha dinheiro na carteira, ele exibe, sorridente, uma nota de 20 euros.
“Sempre comigo”, responde.