Há alguns meses, tanto governo brasileiro quanto empresários estavam empolgados com a possibilidade de o Brasil ser o vanguardista na produção em escala de hidrogênio verde no mundo. O pioneirismo, apontavam, abriria portas de mercados avançados para a indústria nacional e permitiria o desenvolvimento do Nordeste, região que abriga os principais projetos do combustível no país.
Esse entusiasmo, no entanto, dissipou-se e os brasileiros caíram na real, nas palavras de alguns executivos do setor. A chegada de Donald Trump à presidência dos EUA só aumentou as incertezas preexistentes com o combustível do futuro, e até a Europa –que abrigará a primeira demanda desse mercado– deu alguns passos atrás nas últimas semanas.
O próximo primeiro-ministro da Alemanha, Friedrich Merz, por exemplo, é reticente quanto às metas ambiciosas do atual governo e já questionou a viabilidade de substituir o uso de gás na produção de aço por hidrogênio verde. A narrativa pode ganhar força em caso de um cessar-fogo na guerra na Ucrânia e uma retomada de exportação de gás russo para a Europa.
Sem uma meta ambiciosa dos alemães, que lideram a pauta ambiental na Europa, dificilmente o mercado deve caminhar com a velocidade que se esperava.
“A Europa tinha uma missão publicada de 10 milhões de toneladas de importação, o que equivale a 60 gigawatts de eletrolisadores. Mas eles estão passando por conflitos e por uma série de coisas, o que faz com que a gente entenda que a demanda atual seja bem menor”, diz Luis Viga, responsável pelo projeto da Fortescue no Brasil e presidente do conselho da ABHIV (Associação Brasileira da Indústria de Hidrogênio Verde). “Com isso, muitos projetos no mundo foram cancelados.”
Especialistas também apontam que as pesquisas relacionadas à produção de hidrogênio verde avançaram menos do que o planejado e é difícil estimar quando o combustível terá o mesmo preço do hidrogênio cinza, feito a partir de combustível fóssil.
A Bnef, braço da Bloomberg responsável por pesquisas sobre transição energética, apontou neste mês que dificilmente o quilo do hidrogênio verde custará, em algum momento, US$ 1, valor necessário para que se equipare ao hidrogênio cinza. Hoje, nas contas da consultoria, no melhor cenário possível, o combustível limpo custa US$ 3,2 por quilo na China.
Fora do gigante asiático e com tecnologias menos avançadas, no entanto, esse valor sobe para US$ 4 na Arábia Saudita, US$ 6,3 na Índia, US$ 6,7 na Espanha e US$ 7 no Brasil. As análises levam em conta projetos desconectados da rede elétrica, mas no caso do Brasil os projetos devem estar conectados, o que reduziria o atual preço para cerca de US$ 3,5, segundo executivo do setor.
Ainda assim, o avanço de alguns projetos fora do Brasil a partir de subsídios públicos e as dificuldades físicas para transportar o hidrogênio para a Europa colocaram alguns países mais próximos dos europeus na dianteira da corrida pelo primeiro fornecimento. No ano passado, um projeto de hidrogênio verde no Egito foi o campeão de um leilão organizado com o governo alemão para abastecer o país a partir de 2027.
“O que houve, na verdade, foi um choque de realidade de qual é o tamanho desse mercado e no que ele pode ser usado”, diz Vinicius Nunes, chefe de pesquisa do mercado brasileiro de transição energética na Bnef. “Mas, ao mesmo tempo, não necessariamente o Brasil vai ser o fornecedor; o país pode até ser competitivo, mas há subsídios e regulações [que afetam a corrida].”
A proximidade dos projetos com a Europa é um dos pontos mais levados a sério nas análises de viabilidade feitas pelas grandes empresas do setor, segundo Hanane El Hamraoui, vice-presidente da HDF, empresa francesa com vários projetos de H2 verde no mundo.
O custo logístico do hidrogênio é alto e, em caso de transporte por navios, é necessário transformá-lo em amônia no país exportador e reconvertê-lo em hidrogênio no país importador. Uma das soluções mais viáveis encontradas pelos europeus é o transporte via gasodutos –em janeiro, Itália, Alemanha, Áustria, Argélia e Tunísia anunciaram um plano de avançar na construção da infraestrutura.
“Se quisermos evitar uma infraestrutura muito grande a ser instalada, projetos próximos ao mercado é melhor. O Egito, por exemplo, está próximo do mercado, assim como Marrocos e Tunísia”, diz El Hamraoui.
O cenário desfavorável aos projetos brasileiros prejudica a assinatura de contratos com empresas interessadas em comprar antecipadamente a produção. Essas negociações são responsáveis por injetar investimentos nas instalações ou por facilitar a interlocução com bancos privados.
“Aqui no Brasil ninguém ainda tem contratos de offtake [fornecimento antecipado]. E todos os projetos grandes têm que ser financiados, porque o banco só vai emprestar se tiver offtake”, diz Viga, da Fortescue. Executivos acreditam que esses contratos só serão assinados quando os projetos tiverem concluído suas engenharias.
Mas o primeiro grande contrato de offtake pode estar prestes a acontecer. No final de abril, a Hintco, organização responsável por gerir o leilão que consagrou o projeto no Egito, visitará São Paulo para apresentar seu novo leilão –desta vez com um lote dedicado apenas a projetos na América Latina e Oceania.
A Hintco garante o pagamento de 484 milhões de euros (R$ 3 bilhões) ao projeto vencedor em troca de fornecimento do hidrogênio verde para empresas europeias de 2028 a 2036 —em comparação, o projeto da Fortescue exige R$ 20 bilhões.
Vence o projeto com o menor preço, sendo que a diferença entre o valor vendido e o pago pelas empresas será bancado pelo governo da Alemanha. A quantia só será entregue ao projeto após o fornecimento, mas uma garantia antecipada de demanda pode facilitar a interlocução com bancos privados.
“Nós oferecemos acordos de compra de longo prazo, com preços fixos, e isso permite que os projetos tomem a decisão final de investimento e tenham um caso de negócio viável. Com isso, eles têm um comprador que está além de qualquer risco de crédito, já que o leilão é apoiado pelo governo alemão”, diz Timo Bollerhey, CEO da Hintco. O vencedor deve ser anunciado no início do ano que vem.
A expectativa é que, caso o vencedor seja um projeto brasileiro, o andamento da primeira produção possa alavancar a demanda interna do país, o que desprenderia os interesses do Brasil das políticas europeias. “Uma vez que você comece a produzir e a aumentar a escala, o seu custo de produção diminuirá. E então isso chegará a um ponto onde também será interessante para o consumo local”, diz Bollerhey.
A demanda local, aliás, é vista por alguns especialistas como a origem da real viabilidade dos projetos brasileiros de hidrogênio verde, hoje ainda muito voltados para exportação.
“O Brasil tem que olhar principalmente para o mercado doméstico, porque o maior uso hoje de hidrogênio no país é a Petrobras, então você já tem um uso que poderia ser descarbonizado. Se a possibilidade de exportação acontecer, acho que é ótimo, mas o Brasil tem que focar também projetos domésticos”, diz Nunes, da BloombergNEF.
O jornalista viajou a convite do Ministério de Relações Exteriores da Alemanha