No mesmo dia em que o mundo conheceu o novo papa, assistimos a outra escolha histórica —desta vez, feita por Bill Gates. O bilionário fundador da Microsoft anunciou o maior plano de doação da história de uma fundação privada: mais de R$ 1 trilhão até 2045, quando a Fundação Gates será oficialmente encerrada.
O anúncio surpreendeu não só pelo valor inédito, mas por representar uma mudança significativa no modelo de legado de grandes doadores. Em vez de deixar uma herança eterna e institucionalizada, Gates está construindo um plano estratégico, cuidadoso (e ousado) de encerramento: “Há problemas urgentes demais no mundo para manter recursos que poderiam estar ajudando pessoas agora”, justificou.
Conhecida como “sunsetting” (pôr do sol), a estratégia de planejar o encerramento no auge é pouco comum na filantropia, mas vem ganhando força como forma de maximizar impacto em vida, evitar a burocratização futura e focar em problemas urgentes e complexos.
Desde sua criação, a Fundação Gates já destinou mais de US$ 100 bilhões a causas como saúde, educação, combate à pobreza e igualdade de gênero. Só em parceria com a Gavi (Aliança Global para Vacinas) e o Fundo Global, estima-se que mais de 80 milhões de vidas foram salvas. Agora, com o novo plano, os repasses anuais dobrarão, atingindo US$ 10 bilhões por ano.
A decisão de acelerar e aumentar significativamente as doações contrasta com os cortes abruptos promovidos por Trump e Elon Musk —que reduziram mais de 90% dos contratos de ajuda externa da Usaid, da noite para o dia.
Neste contexto de desmonte, a Fundação Gates se posiciona como uma “força de estabilidade”, cuja importância simbólica transcende seu impacto direto.
E que impacto: neste patamar de investimento, não estamos falando de filantropia para mitigar danos, mas erradicar problemas. Uma das metas da Fundação para esta nova fase é que “nenhuma mãe, criança ou bebê morra por uma causa evitável até 2045”.
Ou seja: não se trata de um plano de saída, mas de chegada.
Gates não quer simplesmente “fechar as portas”. Quer entregar tudo o que pode ao mundo nos próximos 20 anos. É aí que o sunsetting se aproxima de algo ainda mais potente: um “moonshot” (ou tiro à lua), um dos meus conceitos favoritos para a filantropia. Não no sentido raso de “pensar grande”, mas de se comprometer com ousadia e agir com coerência.
Como explica Dan Pallotta nessa conversa imperdível com Rodrigo Pipponzi, o termo surge em 1961, com o anúncio do presidente Kennedy de que os EUA levariam um homem à Lua até o fim da década. Na época, não havia tecnologia pronta para essa missão, mas um prazo e um compromisso público. E isso forçou conversas e investimentos que viabilizaram o impossível.
Moonshot, portanto, não se mede pelo tamanho da ideia, mas pela robustez do compromisso —acompanhado de prazo, meta e investimento à altura. E quando o investimento social privado assume esse papel e banca o risco inerente a qualquer empreitada audaciosa, ele pode privatizar o fracasso e socializar o sucesso —que depois ganha escala com o poder público. E isso muda o jogo.
Outra coisa que muda o jogo é o fato de esta decisão ter sido tomada agora. Estamos vivendo um ponto de inflexão histórico. Um momento em que o mundo se aproxima do “joelho” da curva exponencial: aquele ponto em que o avanço tecnológico deixa de parecer acelerado e passa a parecer mágico.
Nos próximos 20 anos, provavelmente veremos mudanças mais radicais do que nos últimos dois séculos. Mover ponteiros nesse período pode não só mudar o ritmo, mas o rumo da nossa história. Gates é ousado —mas sabe que não pode fazer isso sozinho. A esperança é que seu gesto inspire outros movimentos similares, tanto no investimento social privado quanto público.
Como reforça Neca Setubal, “nenhuma ação isolada, por mais bem-intencionada, substitui políticas públicas estruturadas”. Nem substitui, nem compensa: afinal, se a Fundação Gates doa US$ 10 bilhões por ano e Musk corta dezenas de bilhões em ajuda internacional, a conta global fecha no vermelho.
Rumo à Lua (não a Marte)
No mundo, há mais de 3.000 bilionários (e 15 centibilionários!). Imagina se cada grande fortuna viesse com um plano de redistribuição radical, com prazo para acontecer? A filantropia poderia ser nossa mais poderosa tecnologia de transição.
Transição para onde? Como sonhou Melinda Gates, cofundadora e visionária da Fundação Gates e do Giving Pledge (movimento que estimula bilionários a doarem a maior parte de suas fortunas em vida), transição para um futuro no qual a filantropia não seja mais necessária.
Pois esse é meu novo sonho, que as lideranças mais poderosas do mundo se unam para subverter um dos maiores absurdos do mundo tech e viabilizar seu maior legado: o plano de obsolescência programada… da própria filantropia.
Prazo? Antes que ela (a obsolescência) nos alcance.
Este texto foi produzido para a Causa do Ano ‘Doar É Transformar’, que conta com apoio do Movimento Bem Maior.