A notícia de que o autodenominado ex-coach e político de ocasião Pablo Marçal virou réu pela acusação de ter levado 32 pessoas totalmente inexperientes à subida pesada do Pico dos Marins (2.420 metros de altitude), em Piquete (SP), em pleno janeiro chuvoso de 2022, pede um segundo olhar.
Para começar, mesmo acontecendo três anos depois do fato, só explorado de raspão quando o cidadão se candidatou à Prefeitura de São Paulo, em 2024, trata-se de uma notícia boa sobre um evento assustador —mas que anda fazendo uma triste escola.
O discurso de Marçal a seus seguidores, que pagam fortunas para ouvir palestras cheias de chavões de autoajuda, salpicadas de menções a Deus e aos homens de bem, esses que conseguem tudo o que querem pelo simples fato do que consideram honrar as calças, e que invariavelmente garantem que as esquerdas querem acabar com a família, quase matou aquelas pessoas de, vá lá, boa fé. Se ele organizou o convescote irresponsável ou se foi só acompanhado em uma ação entre amigos, que é o foco da sua defesa, não importa para o resultado desastroso. Afinal, não é pouca porcaria subir a um pico na serra da Mantiqueira na temporada de tempestades de verão em seu auge. Mas é porcaria pior subir em condições precárias, ignorando a meteorologia, contra todos os alertas dos guias locais e com um monte de gente que nunca viu mato na vida.
Marçal, relataram na época alguns participantes que deixaram a empreitada pelo meio vencidos pelo bom senso, teria convencido seus seguidores de que a fé em Deus lhes permitiria desafiar os elementos, o cansaço e, eventualmente, a hipotermia, embora o influenciador negue as acusações e diga que só foi com ele quem quis e porque quis. Em vídeos no YouTube, as rajadas de vento forte no local onde o grupo acampou rasgam as barracas, a chuva forte encharca cada membro da tresloucada expedição, enquanto ele tenta animar os que persistiram na empreitada —menos de um terço do grupo original—, dizendo que eles são os que prosperam (coach adora meter um prosperar em cada frase, já percebeu?). A interpretação é que aquilo é um desafio que o todopoderoso envia aos que têm convicção de que tudo podem. O diabo (perdão, mas ele também é citado na Bíblia) é que não podem. E se não fossem os bombeiros, acionados a tempo pelos guias que retornaram com os desistentes, a acusação de Marçal poderia ser, hoje, de homicídio, no mínimo culposo. Deu sorte o moço que levou cadeirada do jornalista José Luiz Datena ao vivo, durante o debate na TV Cultura no primeiro turno das eleições de 2022.
Entretanto, a má notícia aqui é que Marçal não está só nos desafios à natureza, essa incompreendida. Outro grupo notório que se diz inspirado nas sagradas escrituras para, teoricamente, provar que, querendo muito, o macho raiz supera todas as dificuldades, avança entre os autointitulados homens de bem do país, promovendo encontros que os levam a situações semelhantes, e invadindo áreas de preservação sem autorização, em bandos cada vez mais numerosos. Trata-se dos Legendários, movimento criado pelo pastor evangélico guatemalteco Chepe Putzu, autor do livro-revelação “A Rota do Caçador”, que chegou ao Brasil a partir de Balneário Camboriú (onde mais?) e que tem no pastor Ricardo Bernardes seu líder maior por aqui.
Os Legendários, com seu discurso machista de devolver ao homem o papel de provedor e protagonista do progresso, e preservar a mulher como criatura servil, recatada-e-do-lar, ecoam em seu grito de guerra —ahu!— a masculinidade imaginada para o alfa das cavernas, contando com a Bíblia (item obrigatório na mochila) para superar montanhas, rios, matas e desafios mais complicados como, digamos, devolver ao ex-presidente inelegível Jair Bolsonaro (PL) o direito a um novo mandato.
O sucesso do grupo —que afirma ter mais de 50 mil seguidores no Brasil, e que já recebeu até o próprio Marçal em um de seus desafios realizado na Flórida, nos Estados Unidos—, é tamanho, que até a Decathlon, pragmaticamente, pôs à venda um kit básico para o legendário chamar de seu. No site, sai por R$ 889,90 e inclui mochila, saco de dormir, isolante e bastão. Tudo tão básico que provavelmente o cliente nunca viu uma trilha antes em toda a sua vida. O saco de dormir do kit, por exemplo, prevê proteção térmica para temperaturas entre 5°C e 12°C. Nesta semana, o Parque Nacional de Itatiaia registrou mínimas de -6°C. Noites ao relento no inverno e nas matas fechadas em qualquer época do ano na maior parte do território brasileiro geram sensação térmica facilmente abaixo dos tais 5°C .
Por nada, não, mas é melhor repensar isso aí.