Se você já participou de uma prova de corrida mais longa, uma maratona, quem sabe, provavelmente já foi chamado de guerreiro pelo sujeito parado na calçada.
“Bora, guerreiro, vamo, falta pouco.”
O admirador —é isso sem tirar nem por que ele é— usa esse vocativo bastante bélico, talvez um tanto religioso, como incentivo 100% sincero.
(O “falta pouco” em geral é menos sincero.)
Por um instante, viramos o herói possível, à mão, prêt-a-porter, do tiozinho da calçada.
Quando o admirador fala “guerreiro”, ele demonstra que as pessoas seguem a associar corridas, especialmente as de resistência, a sacrifício. Não está sozinho: palavras como “entrega”, “desafio”, “luta” e, claro, “dor”, pululam no léxico da corrida e da atividade física de modo geral, muito mais do que “prazer”, “diversão”, “relaxamento”, “buena onda”.
É compreensível: a exaustão física tem um pé no transcendente. Dívidas e acordos com o divino são celebrados e pagos com procissões, romarias, escaladas, esforços incomuns. Numa palavra, com sacrifício. Deus é figurinha fácil nas provas de corrida.
Pois eu digo: não há, ou não deveria haver, heroísmo, beligerância, dor, sacrifício na corrida, quaisquer que sejam as distâncias.
De início, há a situação, bastante confortável, de o corredor ter escolhido por conta própria correr. Não colocaram uma automática em nossas têmporas, não fomos obrigados a isso, como no caso do soldado do mito fundador da maratona na Antiguidade.
A ideia de que só o esforço traz resultados é respaldada por muitos educadores físicos, que, de fato, não estão de todo errados. O aumento de condicionamento vem quando o corpo responde a estímulos distintos daqueles a que já está acostumado. Como diria o Murakami, o escritor, maratonista e eterno perdedor do Prêmio Nobel, nossas coxas são burros de carga e respondem ou relaxam de acordo com a demanda.
Mas é possível terminar uma corrida longa, e aumentar gradativamente sua distância, virar mesmo um ultramaratonista, sem responder a estímulos muito distintos daqueles já conhecidos. Ou seja: sem grande esforço. Diminuir o tempo pessoal, correr com muito mais intensidade, isso daí já é outra história.
Essa minha cisma com o elogio do guerreiro não é nova, mas foi reavivada depois que assisti à peça “Primavera cega”, no espaço Zona Franca, no Bixiga, em São Paulo. O espetáculo, que está em cartaz até a próxima segunda-feira (26), tem apenas o ator –e autor– Igor Iatcekiw em cena. Ele interpreta a si mesmo e à mãe, a quem não consegue dar um último beijo no leito do hospital. Igor não logra se despedir dela por ter sido violentado e precisar ele mesmo ser hospitalizado. Era o segundo episódio de estupro de que fora vítima.
Embora não busque confundir o público com recursos de autoficção, a peça é efemaratotivamente teatro, não um relato jornalístico como posso estar a deixar transparecer aqui. Igor trabalha dimensões complexas desse seu trauma com enorme habilidade cênica. E, principalmente, com coragem absurda para enfrentar uma plateia diversa a centímetros dele, plateia em que poderiam estar presentes —por que não?— seus violentadores.
Bora, guerreiro, falta pouco.